A crónica de uma final anunciada: há de ser desta
Está sempre calor nestes verões de seleção, principalmente quando os primeiros jogos não correm assim muito mal, mesmo que não corram assim tão bem, como desta vez, nada estava perdido mas também não passava de empatado. Aos poucos, foram chegando mais adeptos bienais, daqueles desatentos da bola nos dois anos que decorrem entre um Mundial e um Europeu mas que nunca falham quando o calor aperta, lembram-me os condutores de domingo, com direito à estrada como os outros mas que tanto aceleram de modo impróprio como não se percebem caracóis autênticos na faixa da esquerda, adeptos de variação rápida entre a depressão do penálti falhado e o delírio de vitória final mal começa a saltar o ketchup dos golos. O treinador é bestial ou besta mais depressa que nunca, "tira o André, mete o Re-nato, o Quaresma tem de jogar", como se isto de jogar pior ou melhor dependesse só de um, é que nem do Ronaldo, que é o melhor de todos. E chegam as mulheres e as crianças, o futebol volta a ser um jogo de família, multidões que gostam de assistir ao jogo em grupo, a gritar mais do que a ver, e todos ao mesmo tempo, a sofrer agarrados à bandeira que sai da naftalina graças ao Ronaldo e ao Quaresma, e aos outros, como o hino só se canta com alma nestes dias de bola, o povo comove-se, os craques alinhados, filmados um a um e mostrados no ecrã gigante cheio de reflexos onde daqui a pouco vai ser difícil descortinar a bola, nação valente outra vez, afinal somos portugueses e é nestes momentos que mais se nota, algum dia haveremos de ganhar qualquer coisa. E há de ser desta.
Papel ingrato do crítico, grilo falante a lembrar "nunca fomos campeões, nem da Europa nem do Mundo", mas que interessa isso se agora temos o Ronaldo? Também já tivemos Eusébio e Figo, nenhuma pátria tão pequena produziu três Bolas de Ouro. Isso agora não interessa nada, tem de ser desta, perder com o País de Gales era o que faltava, quero lá saber se têm o Bale, que nós temos o que mais vale, dediquem-se ao râguebi que aqui não há três pontos para eles, nestes relvados com balizas normais a ciência não é chutar para a frente com força e se for para fora não faz mal, que logo se encaixam num magote, ombros nos ombros, agachados como numa caça ao rato. Este é o nosso jogo, caros galeses, com a mão não vale, só no pé, não é para todos, chamam-lhe técnica, habilidade, nascemos com isso, desculpem lá, e somos multiculturais como poucos, andamos há décadas a cruzar o nosso jeito, mais quente, com os de África e do Brasil, por isso ele tem a ginga que só se aprende abaixo do equador.
Os adeptos não querem saber do 4-4-2, mas deviam, perceberiam melhor porque se ganha ou perde, dizem que é para os especialistas, inventores da teoria complexa que explica o jogo simples, mas depois criticam-nos, profetas da desgraça, não defendem o que é nosso, que interessa se joga melhor ou pior desde que ganhe, se o Quaresma voltar a marcar no fim está tudo bem, olhem que não, olhem que não, por falar nisso, tem sido mesmo em 4-4-2 que a coisa tem andado melhor, e o miúdo Renato a jogar a partir da faixa, penso que melhor da direita, sim, da ala e ainda não do centro onde pode vir a ser dos maiores de todos se aprender entretanto que o jogo não se joga apenas quando se tem a bola, e que há espaços que têm mesmo de ser ocupados quando ela está do outro lado. Tantos nunca o vão entender que insistem em querer o jogo como lho ensinaram, carregado de emoção e talento individual, e não espartilhado pela tática, como se a tática fosse só defender quando a tática é tudo, ou quase tudo, e há décadas que o talento individual deixou de garantir as melhores emoções, as da vitória. Para nossa sorte, e se a sorte existe é nossa por estes dias, Fernando Santos sabe disso, tranquilizem-se, ele sabe, que a equipa tem de estar equilibrada para poder ganhar, que isto não é só bola no Ronaldo e fé em Deus, há uma estratégia para aplicar, menos complexa agora que não têm o Ramsey para levar a bola ao Bale, mas cuidado que ainda há os livres dele e os cantos deles todos. Como amarrar os laterais galeses lá atrás para que não ganhem superioridade no meio campo? Como chegar à baliza deles sem cruzamentos em série que se prepararam desde crianças para ser mais fortes com a bola no ar? Em tudo isto pensa Fernando Santos, que sabe que esta equipa é um estado de alma, mais coração que razão, mas sabe também que nada chega ao destino só de mãos dadas e bandeiras nas janelas.
É um país num carrossel, que se desencantou aos primeiros empates mas se apaixonou de novo nos empates seguintes, e que pede música que o leve em mais uma viagem, a dar a volta aos de Gales e até Paris, pode ser celta a música, nas raízes que nos ligam ao rival de ocasião, território de três milhões que faz de Portugal potência e favorito. Haja Ronaldo e Nani para fazer golos, e Pepe sem dores nos músculos que o impeçam de continuar a correr mais depressa que os outros, e venha essa final que vingue de uma só vez o golo do Platini, o chapéu do Poborsky, a mão do Abel Xavier e o penálti do Bruno Alves, já basta de meias-finais perdidas. E sobretudo sejamos gratos a Traustasson, o islandês do golo tardio que nos atirou para o lado certo do quadro competitivo. Se isto correr bem até ao fim, façam dele convidado de honra para a festa. Há-de ser desta. A final, pelo menos.