A "crise do ocidente": a perspetiva alemã na Conferência de Segurança de Munique

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Comemoram-se este ano setenta e cinco anos do fim da Segunda Guerra Mundial e da libertação de Auschwitz, sendo que sem a referência a estas experiências não será possível explicar a visão que a Alemanha tem atualmente do mundo, conforme notado pelo Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, no seu discurso de abertura da Conferência de Segurança de Munique, realizada entre os dias 14 e 16 de fevereiro.

Estando na sua 56ª edição, a Conferência teve como tema "West-Losigkeit" em alemão, "Westlessness" em inglês, "falta de ocidente" numa mais tradução literal ou a "crise do ocidente" em português. Isto significa que, de acordo com o relatório anualmente elaborado pela referida Conferência, o mundo está a tornar-se menos ocidental e o ocidente pode de igual modo tornar-se menos ocidental, o que se reflete não só nas tendências de conflito, mas também no desenvolvimento das instituições internacionais (em especial, a UE e a NATO). Assim, o ocidente necessita de uma estratégia dupla através da qual coopera segundo os seus interesses com os Estados autocráticos e, ao mesmo tempo, reforça a coesão ocidental numa cena internacional cada vez mais competitiva.

Nesta linha, o Presidente alemão considera que nem a Alemanha nem o ocidente podem moldar o mundo à sua imagem, sendo necessário compreender as visões dos outros atores das relações internacionais. Todavia, e como estabelecido desde logo no preâmbulo da Constituição alemã, um dos objetivos da Alemanha relaciona-se com a promoção da paz enquanto parceiro igual numa Europa unida. A Europa constitui-se como o interesse nacional alemão mais fundamental e forte (encontra-se no centro da sua política externa desde a reunificação, segundo Bierling, 1994), fornecendo a estrutura indispensável a partir da qual a Alemanha se poderá afirmar no mundo, na medida em que corresponde à única resposta de sucesso aos desafios colocados pela história e geografia alemãs; refira-se, assim, que nas suas memórias, em 2007, o ex-chanceler Helmut Kohl relembrou que a unificação decidiu-se pelo futuro dos alemães e do continente europeu relativamente à questão da guerra e da paz. Daí que para Steinmeier, se o projeto europeu falhar (e, portanto, a Alemanha deverá esforçar-se por manter a Europa unida), serão colocadas em causa as lições da história alemã. Portanto, a Alemanha deve contribuir mais para a segurança europeia, incluindo financeiramente, e continuar a investir na ligação transatlântica.

Há que apostar na construção da segurança e defesa da UE enquanto forte pilar europeu da NATO, de acordo com o Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Heiko Maas, também presente no primeiro dia desta Conferência. Esta deverá, aliás, ser a tarefa europeia desta década. A Alemanha está pronta para se comprometer militarmente, mas segundo uma lógica política, e trabalhar em conjunto com a França. Por outro lado, Maas apela a um verdadeiro debate político sobre a parceria transatlântica no século XXI e à luz das realidades com que estamos a lidar hoje, sendo que os EUA continuarão a ser precisos no futuro. No seu entender, só juntos poderemos ter a força económica, o potencial militar e as ideias políticas necessárias à defesa de uma ordem mundial baseada em regras.

Já para a Ministra da Defesa alemã, Annegret Kramp-Karrenbauer, o ocidente corresponde a uma ideia que vai para além da Europa, dos EUA, da UE e da NATO. Trata-se de uma sociedade livre, de Direitos Humanos, Estado de Direito, separação de poderes, parceria e baseada no Direito Internacional. Apesar das crises e das deceções dos últimos anos que têm colocado em causa se a ideia de ocidente ainda serve de orientação, Kramp-Karrenbauer entende que a mesma é atraente e fascina pessoas em toda a parte. Porém, mais do que conversar, importa agir e, por conseguinte, a Ministra relembra o facto da Alemanha se encontrar empenhada em aumentar anualmente o seu orçamento da defesa para cumprir com os 2% do PIB (até 2031), exigidos pela NATO, tida como um elemento essencial da segurança europeia.

Sendo a Europa um dos atores abordados este ano no relatório da Conferência de Segurança de Munique (EUA, China e Rússia são os outros), é igualmente de assinalar, neste sentido, como destacado pelo documento, o facto de Ursula Von der Leyen, atual Presidente da Comissão Europeia e ex-Ministra da Defesa alemã, ter afirmado dirigir a sua comissão geopoliticamente com o intuito de tornar a Europa "weltpolitikfähig" [capaz de uma política mundial], o que passará por fortalecer a UE onde esta tem uma real vantagem competitiva, caso da esfera económica, procurando encaminhá-la para a concretização de uma genuína União Europeia de defesa. Esta referência surge após ter sido mencionado o alerta do Presidente francês, Emmanuel Macron, no passado outono de 2019, a propósito de que, se a Europa não aprender a linguagem do poder, desaparecerá geopoliticamente ou terá o seu destino determinado pelos outros. Neste contexto, e alguns parágrafos depois, o relatório refere a falta de coordenação e a existência de diferenças fundamentais entre a França e a Alemanha (eixo fundamental da integração europeia) a propósito da direção estratégica a seguir pela Europa, relembrando a situação recente do veto francês ao alargamento da UE aos Balcãs ocidentais (relativo à adesão da Macedónia do Norte e da Albânia), sob o argumento de que a UE deve aprofundar as suas instituições antes de permitir a adesão de novos membros.

Finalmente, e para além da parte respeitante aos atores, o relatório dispõe de duas outras partes: uma dedicada às regiões e outra sobre problemas. A propósito das regiões foram objeto de análise este ano: o Mediterrâneo, o Médio Oriente e o Sul da Ásia. Quanto aos problemas identificaram-se os seguintes: a segurança espacial, as questões climáticas, o extremismo de direita e, a tecnologia e inovação.

Doutora em Estudos Estratégicos pela Universidade de Lisboa

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