A crise de coragem
Na sua história económica do Reino Unido, Duncan Weldon introduz o livro com uma "conhecida, e muito antiga, piada irlandesa". Um turista pede direções a um local para encontrar o seu caminho e este responde-lhe: "Eu se fosse a si não começava por aqui". Weldon, um dos mais originais e argutos jornalistas na Grã-Bretanha, conta a saga de 200 anos de economia sem esquecer o ensinamento da graça: quando vivemos um tempo, não somos nós que escolhemos o peso que o passado exerce sobre ele. Dito de outro modo: quando escolhemos um destino, raramente temos o luxo de decidir o nosso ponto de partida - mesmo que o cómico irlandês tivesse razão e, realmente, não fosse grande ideia começar por ali.
A alegoria de Weldon merece o seu encanto e carrega um ensinamento para a análise política. Na maioria das vezes, os nossos protagonistas são herdeiros involuntários de opções anteriores à sua chegada ao poder. Quando esta crise se abater mais amplamente sobre as sociedades - com recessão, estagflação e desemprego na Zona Euro -, a questão que irremediavelmente contagiará o debate será a mais simples de todas, por mais vã: de quem é a culpa? Será assim porque dois terços dos franceses votam em figuras eurocéticas para a sua chefia de Estado, porque há uma primeira-ministra nacionalista em Itália, porque há um leste europeu determinado em rearmar o continente, porque nenhuma maioria - absoluta ou não - é impune a empobrecer quem votou nela.
O problema é que, neste caso, nesta crise, todos terão culpa. Os responsáveis por esta policrise, como lhe chama Adam Tooze ("quando a interação dos choques é mais esmagadora que a soma das partes"), serão todos ou quase todos. A Alemanha, com o seu sonambulismo estratégico, a União Europeia, que se deixou guiar por ele, o Banco Central Europeu, que adormeceu ao volante, os governos nacionais, que não lhe buzinaram para que travasse a tempo. Ao contrário do turista perdido de Weldon, nesta crise, não somos legatários inocentes de decisões que não nos couberam. Fomos complacentes com o infortúnio que aí vem.
Em setembro de 2021, a inflação medida pelo BCE excluindo os preços de energia e de alimentos processados era de 1,9%. Não havia guerra, invasão da Ucrânia ou sanções. Daí em diante, não parou de subir, ultrapassando largamente o limite dos 2% estabelecido pelo banco. A sra. Christine Lagarde, no entanto, nada fez. Durante dez longos meses, a inflação - incluindo a calculada independentemente das energéticas e alimentares - disparou. E a presidente do BCE nada fez para cumprir a premissa mais basilar do seu mandato: a estabilidade de preços, os 2% de inflação.
As recentes subidas da taxa de juros - que, diga-se, não desaceleraram ainda inflação nenhuma - não são mais do que uma consequência dessa demora em ver o que estava à frente do seu nariz. As críticas de líderes políticos à nova subida, esta semana, não escapam à ironia de nada terem dito quando era evidente que o BCE tardava em responder aos sinais de inflação. Preferem criticar a subida dos juros, agora mais avolumada e dolorosa por isso, quando não ousaram contrariar o atraso que era óbvio há um ano - mas politicamente menos conveniente de identificar.
Se quisermos resumir o réu a uma característica, é essa. Esta é uma crise de coragem, suscitada pela falta de coragem e dificilmente resolvida sem ela. Foi a falta de coragem que fez com que o BCE prolongasse em excesso o expansionismo monetário, inundando as economias de dinheiro ao ponto de a inflação de hoje ser quase igualmente provocada pela oferta e pela procura. Foi a falta de coragem dos governos, que viciaram os seus programas eleitorais num ambiente de juros baixos que, como se vê, afinal não era eterno. Foi a falta de coragem da sra. Lagarde, que adiou o inadiável durante dez meses.
Em Portugal, também não somos o turista de Weldon. Mário Centeno, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa sabiam tudo isto tão bem quanto a presidente do Banco Central. O nosso Parlamento, tristemente, continua dedicado aos fantasmas de Sócrates, bancarrota, Passos, troika, fascismo e tudo mais, como se o passado que congelou os últimos sete anos impedisse a realidade de nos bater à porta em 2023. Aos problemas de hoje, a um país com futuro, não se dedica uma palavra.
A Europa chega a uma crise de coragem por falta dela.
Nós não somos diferentes.
Colunista