A Covid-19 mudou, as notícias ainda não
Talvez valesse a pena explicar à Dinamarca que a Covid-19 não pode ser erradicada. Ou que casos novos, muitos deles assintomáticos, não significam internamentos ou mortes. E que se deve confiar num país que faz tantos testes - porque quem testa, encontra, e assim se podem ir cortando cadeias de contágio enquanto se mantém a população atenta aos possíveis surtos. Isto é uma estratégia certa, transparente, que não tem medo dos números nem das notícias diárias a anunciar o caos.
É fácil para a Dinamarca, ou outros países, fecharem as fronteiras a Portugal e ao mesmo tempo abri-las ao Reino Unido, ainda que os números de vítimas e casos em Inglaterra continuem altos. Este tipo de decisões na política internacional (e infelizmente também dentro da União Europeia) resultam de uma lenta evolução quanto aos principais indicadores da doença. Porque eles mudaram.
Como se vê em Pequim ou Nova Zelândia, é impossível erradicar o coronavírus. Até na Alemanha surgem surtos significativos. Toda a gente sabe que só a vacina ou a imunidade de grupo podem mudar a situação. E da vacina, continuamos à espera. Quanto à imunização, segue o seu caminho, misterioso. Ou, como dizia de forma certeira o presidente do Lar da Misericórdia de Aljubarrota ontem à TVI, face aos 42 infetados: "A origem ninguém sabe. O bicho não diz a ninguém: aqui estou eu", rematando de seguida, "Não fomos nós que o fomos buscar, ele é que veio". A situação dos 42 pacientes de Aljubarrota é grave? "A situação está ótima. Quer dizer... dentro da normalidade está boa".
Não vi nenhum especialista explicar porque aparecem neste momento tantos assintomáticos positivos, mesmo em lares de idosos, e praticamente sem consequências - ao contrário do que acontecia há três meses.
Testar, testar, testar. Quanto mais se testa, mais se encontra, mais os números sobem. Por isso tentei encontrar um ranking internacional que comparasse o número de internados ou de cuidados intensivos na Europa (ou no mundo) em tempo real - ou pele menos um comparativo face às últimas semanas. Não descobri. O Centro Europeu para o Controlo das Doenças (ecdc.europa.eu) tem alguns números agregados, a Organização Mundial de Saúde outros, mas não as "curvas" e disponibilidades dos SNS em tempo real.
É importante saber-se o número de casos novos? Sim. Mas neste momento eles não são já a única amostra da situação. Muitos países estão a piscar o olho ao turismo e a empurrar o problema para debaixo do tapete, aumentando brutalmente a hipótese de uma segunda vaga "inesperada".
A única verdade nua e crua sobre a Covid-19 neste momento é: quantas pessoas estão a morrer / internadas / em cuidados intensivos. E neste particular, Portugal tem sido um exemplo de atuação hospitalar, de investimento em testes e em clareza.
Ontem a TVI, por exemplo, já deu um passo: tentou apurar qual a taxa de ocupação dos cuidados intensivos de alguns hospitais de Lisboa - e avançou 60%. Isto é informação concreta. Mas o país tem muitíssimos ventiladores disponíveis - já tivemos 271 internados nos cuidados intensivos, a 7 de Abril, e hoje são 67. O pico dos internados foi de 1302 e atualmente são 416. Os óbitos diários já estiveram acima dos 30, durante uma quinzena em Abril, mas felizmente estamos num só dígito desde 5 de Junho. Portanto, estamos a ver em Lisboa agora o que se passou no Norte e Centro em Abril.
A Direção Geral de Saúde tem de evoluir na informação que faz sair no boletim das 13 horas. Os totais de casos e vítimas (desde 1 de Março) não são hoje já a informação mais relevante. Interessa-nos realmente saber desde logo os casos novos, mas em simultâneo como está a ocupação hospitalar. Ora, esta informação está na última página do relatório. Porquê?
Portugal propôs-se a receber a Liga dos Campeões e a Web Summit em Novembro. Não para ocupar hospitais com doentes ou trazer covid para Portugal durante os eventos, mas porque esses anúncios em si mesmos têm como efeitos colaterais gerarem confiança nos turistas europeus. Queremos que venham?
Potenciar algum turismo europeu, mesmo que não signifique muita gente, é vital. Se não for no Verão e Outono, quando trabalhará o turismo? Aliás, é muitíssimo provável que no Inverno muita gente queira ir de novo para casa porque vai haver muita confusão entre gripe e covid. Mas até lá, ficamos tolhidos de medo? O Estado ou a União Europeia pagarão tudo, sem limites?
Milhares de portugueses precisam mesmo de trabalhar porque não têm o rendimento garantido. Arriscar um pouco nesta altura do ano é legítimo. Só no final deste processo saberemos realmente as vidas que salvamos - e bem. Mas também quantas décadas levaremos a pagar a conta. Há duas pandemias em curso.