A costa dos murmúrios
Há alguns dias, fui convidada para visionar o filme A Costa dos Murmúrios, realizado por Margarida Cardoso, sobre o homó- nimo livro de Lídia Jorge. Mais uma vez senti que África e, em particular, Lourenço Marques continuam bem presentes na minha lembrança e no meu coração. E espero que assim continuem até ao resto dos meus dias. Não vivi nem nasci naquela terra, mas ela apossou-se, irremediavelmente, de mim. Como já acontecera, aliás, com parte da minha família. Que ali viu, pela primeira vez, a luz do dia. O filme - que abre com imagens de uma avenida onde me passeei, feliz, centenas de vezes - é um olhar profundo, terno e doloroso, íntimo e devastador, do quotidiano de bastantes portugueses que naquele chão deixaram uma parte importante das suas vidas.
A época colonial continua a ser um tema fracturante da nossa sociedade. De um lado estão os que sempre consideraram aquele solo um bocado de Portugal e como tal o defenderam.
Do outro estão os que sentem a raiva de terem sido obrigados a participar de um conflito com o qual nunca concordaram. No meio do turbilhão encontram-se os que, por opção pessoal, lá decidiram viver.
Margarida Cardoso aborda tudo isto pegando numa história de amor que decorre nesse período de perda emocional e geográfica. Mostrando a violência, quase doméstica, exercida, de forma inconsciente, pelos homens sobre tudo o que os rodeava, e, em particular, sobre as mulheres, quando voltavam dos combates. Mas quer a abordagem quer o amor são, desesperadamente, portugueses. A guerra, essa, é como todas as outras. Injusta. Para ambos os lados. Para aqueles que se viram forçados a fazê-la e para aqueles que foram obrigados a sofrê-la.
Os povos têm diferentes formas de reagir aos períodos traumáticos da sua história. Os americanos, por exemplo, desde muito cedo, exploraram cinematograficamente o tema do Vietname. Numa espécie de psicanálise pública e de catarse nacional. Ao invés, em Portugal, a luta colonial foi, até há bem pouco tempo, uma matéria escondida e ignorada pelo cinema. Só muito recentemente começámos a ser capazes de a aflorar e, quase sempre, por uma ge- ração mais jovem.
Os americanos, ao contrário de nós, não têm sentimentos de culpa. Os portugueses não só sentem a do colonialismo, como a da incompreensão. Quando falamos do ultramar estamos a referir algo que não é verdadeiramente África, mas sim aquilo que dela conseguimos perceber, o que é muito redutor. A única forma de lidar com a questão não é brandir culpas, mas sim falar de emoções e sentimentos que, sendo universais, diminuirão as hipóteses de sermos injustos. E ter, finalmente, a coragem de falar da nossa actual relação com Moçambique.
Margarida Cardoso soube falar da sua África. Que é, também, um pouco minha. E, julgo, a de muitos de nós. Com a ajuda de excelentes actores e de uma fotografia belíssima.
Saí da sala bastante emocionada. Durante hora e meia recordei épocas e locais onde fui muito feliz. Onde familiares meus deixaram parte da sua alma. Mas onde não consegui, ainda, retornar!