A corrupção em Portugal
A corrupção constitui um dos crimes mais preocupantes para o Estado de direito, uma vez que o coloca ao serviço de interesses particulares. Tem por isso de ser eficazmente combatido. Em Portugal, os relatórios internacionais têm denunciado, no entanto, um falhanço absoluto nesse combate.
Basta ver que no índice da Transparency International de 2019 Portugal tinha obtido 62 pontos, caindo dois pontos em relação ao ano anterior, abaixo da média da Europa Ocidental, que foi de 64, e da União Europeia, que foi de 66, tendo apesar disso mantido o 30.º lugar no ranking global. Em 2020 caiu ainda mais um ponto, atingindo 61 pontos, mas baixando ainda mais o seu lugar no ranking para o 33.º lugar.
Também o Relatório da Comissão sobre o Estado de Direito na União Europeia 2020 tem dados absolutamente devastadores para Portugal, referindo que "grande parte das investigações relacionadas com corrupção termina sem que seja deduzida acusação. No que respeita à aplicação de sanções por crimes de corrupção, em 2017 apenas 10% dos arguidos condenados por corrupção foram condenados a penas de prisão efetivas e 83% tiveram penas suspensas. Em 2018, 12,3% dos arguidos foram condenados a pena de prisão efetiva e 73,6% tiveram penas suspensas". Por esse motivo, o comissário europeu para a Justiça, Didier Reynders, instou em fevereiro passado as autoridades portuguesas a fazerem mais pelo combate à corrupção, salientando que não basta aprovar um enquadramento legal, havendo pelo contrário que atribuir recursos e especializar as autoridades policiais para esse combate.
A corrupção no nosso país pode ter-se agravado ainda mais, uma vez que a Transparency International denunciou um grave fenómeno de corrupção na saúde em todo o mundo em consequência da pandemia de covid-19, com subornos, desfalques, sobrefaturação e favorecimento. Os múltiplos episódios de desvios na aplicação das vacinas em Portugal constituíram mais um triste exemplo de uma sociedade doente em que vivemos, em que a intenção de obter benefícios indevidos nem sequer cede perante o facto de por esta forma colocarem em risco vidas humanas. Ora, em junho passado tivemos a informação de que houve 216 processos-crime abertos no Ministério Público que deram origem a 50 arguidos, e que apenas 30 inquéritos teriam sido concluídos pela Polícia Judiciária, sem se referir se foram arquivados ou deduzida acusação. Ora, perante situações com um alarme social tão grave, como o que ocorreu, é extraordinário que a repressão penal desses comportamentos tenha sido apenas essa.
É por isso necessária uma reformulação total do combate à corrupção em Portugal, sendo manifesta a insuficiência para o efeito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC), apresentada pelo governo sobre a qual a Ordem dos Advogados teve ocasião de se pronunciar. As conclusões a que chegámos foram de que a referida estratégia em parte era ineficaz para combater a corrupção e noutra parte se apresentava perigosa para a proteção dos direitos fundamentais. O governo insistiu apresentando propostas de lei ao parlamento, as quais infelizmente persistem nesses defeitos.
Uma das piores soluções é a proposta de aditamento ao Código de Processo Penal do art. 313.º-A, a consagrar os acordos sobre a pena aplicável, onde se prevê a possibilidade de os tribunais passarem a negociar com os arguidos, não só as penas a que eles podem ser sujeitos, mas inclusivamente as condições do seu cumprimento, garantindo-lhes que ficam fora da prisão. Seguramente que não é esta a melhor forma de se garantir o respeito pelas leis e a punição dos infratores, apresentando-se até como violadora dos direitos dos arguidos, uma vez que podem ser coagidos a confessar crimes com a promessa de uma concreta pena, que até pode ser não privativa da liberdade, e com a ameaça de uma pena maior, que pode ser de prisão efetiva, se não confessarem.
O combate à corrupção passa por um reforço dos meios de investigação criminal, não por alterações da lei a subverter o nosso processo penal, transformando a punição criminal numa negociação de penas.
Bastonário da Ordem dos Advogados