A corrente do Tempo

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Numa semana fértil em notícias pungentes (o massacre na Tailândia, Deus meu!), houve uma, pouco notada, mas direita ao coração. Uma família de Montreal, informa o The New York Times, decidiu empreender uma longa viagem de um ano por África e pela Ásia, facto que, em si mesmo, nada tem de extraordinário não fora o motivo do tour: três dos quatro filhos de Edith Lemay e de Sebastian Pelletier padecem de uma doença oftalmológica rara e incurável, pelo que, muito provavelmente, irão perder a visão nos próximos anos. Por isso, os seus pais decidiram mostrar-lhes o mundo antes que este lhes fuja dos olhos e desapareça da vista - para sempre. A Sr.ª Lemay afirmou que, com esta viagem, ela e o marido procuraram que os filhos contemplassem a beleza e a diversidade da Terra e, ao mesmo tempo, tivessem consciência do privilégio que é vê-la e vivê-la, da sorte que têm por morarem num país rico, com electricidade e com escolas, coisa que, infelizmente, não se encontra garantido para milhões de outras crianças. Nas fotografias, vemos os meninos Pelletier em cenários d"assombração, banhando-se em Zanzibar, conversando com um amestrador de águias na Mongólia, observando as girafas do Serenguéti. Fizeram um coast to coast em África, depois um mês na Turquia, outro nas estepes da Mongólia e a seguir irão até ao Sul da Ásia, Indonésia, com possível paragem no Havai antes do regresso a casa. No deserto de Gobi, numa noite de céu estrelado, Edith Lemay optou por não acordar os filhos, pelo simples mas terrível motivo de que não iriam contemplar nada do firmamento, pois perderam já a visão nocturna. O que mais tem encantado os pais Pelletier é o facto de as suas crianças, conscientes de que irão ficar cegas em breve, não se concentrarem nas paisagens grandiosas ou mais óbvias, detendo-se antes em pormenores minúsculos, que sempre escapam à atenção dos adultos, como os cães e os gatos que deambulam pelas ruas ou um besouro que encontraram no sopé de uma gigantesca duna de areia vermelha, na Namíbia. Será isso, ou a memória disso, que levarão consigo quando mergulharem nas trevas. Oxalá surja um milagre.

Hoje, salvo para os afortunados adolescentes que fazem voluntariados em África ou gap years de mochilão às costas, perdeu-se o sentido e o propósito das grandes viagens, dos périplos que duravam meses, por vezes anos, como a jornada pelo Egipto em que, por uma coincidência incrível, convergiram um francês aspirante a escritor, incerto quanto ao seu talento, e uma jovem inglesa de boas famílias em busca de rumo e destino. Ele chamava-se Gustave Flaubert, ela Florence Nigthingale, e, entre Alexandria e o Cairo, chegaram a partilhar o mesmo navio. Ter-se-ão certamente avistado, ainda que, nos escritos de um e do outro, não exista registo de qualquer conversa memorável ou sequer de um breve encontro. Em A Winter on the Nile, o jornalista e escritor Anthony Sattin, que anteriormente havia descoberto e publicado muita correspondência inédita da "Dama da Lamparina", descreve com pormenor os caminhos cruzados dos dois génios.

Gustave, filho de um reputado médico que exercia funções como cirurgião-chefe do hospital de Ruão, era então um jovem de 27 anos que falhara os estudos de Direito em Paris e que procurava seguir o seu sonho desde criança, tornar-se escritor. Anos antes, no Verão de 1840, e para celebrar a obtenção do Bac, os seus pais tinham-no enviado numa viagem pelo Sul dos Pirenéus, até ao Mediterrâneo e à Córsega. Em Marselha, conhecera Eulalie Foucauld, dona e gerente do Hotel Richelieu, uma mulher casada com quem teve um tórrido e iniciático caso amoroso. Tempos depois, quando estudava em Paris, é acometido pelo primeiro ataque de epilepsia, o que leva os pais a mandarem-no de novo ao estrangeiro, na esperança de que o clima do Sul o poupasse a novas tormentas. Em Génova, no Palácio Balbi-Senarega, contempla As Tentações de Santo Antão, atribuído a Bruegel, e decide escrever um romance sobre esse tema, projecto que desenvolve durante dezasseis meses, trabalhando como um louco, no decurso de um turbilhão emocional marcado pela ruptura amorosa com a sua amante, a instável e caprichosa poetisa Louise Collet, e pela morte repentina do pai e da irmã, com poucas semanas de diferença. Concluído o manuscrito, Flaubert lê-o em voz alta perante dois amigos, numa maratona de 32 horas repartidas em quatro dias. Após terem escutado a leitura do denso texto de centenas de páginas, na preparação do qual o autor se dedicara a estudar os escritos de Santo Agostinho, os Vedas e o Corão, poemas sufis e cantos budistas, os dois amigos dizem-lhe, sem falsos rodeios, que o melhor seria deitar o pastelão ao fogo e nunca mais falar do assunto. Um deles, Maxime Du Camp, propõe-lhe, em contrapartida, que o acompanhe numa longa viagem de vinte meses pelo Egipto, na companhia do seu criado, Louis Sassetti. A mãe de Gustave aventa outros destinos, propõe que passem antes uma temporada na suave ilha da Madeira (e que diferente seria a História, a do mundo e a nossa, se Flaubert tivesse ouvido o conselho da mãe!), mas acaba por aceder ao pedido do filho, o qual, aliás, não aderira com o mínimo entusiasmo ao desafio do amigo Du Camp.

Florence Nightingale, uma jovem que acreditava no papel do destino no rumo das nossas vidas, encontrava-se também, aos 28 anos de idade, numa encruzilhada existencial dilacerante. Oriunda de uma família rica de comerciantes e banqueiros de Sheffield, com arreigadas convicções unitaristas, nascera na cidade toscana com o seu nome, no decurso de um Grand Tour que os seus pais tinham feito pela Europa (aliás, a sua irmã mais velha foi baptizada Parthenope por ter visto a luz em Nápoles, um ano antes). Hoje, à distância de duzentos anos, é impressionante vermos o currículo formativo de uma jovem da idade e da condição social de Florence Nightingale, que aos oito anos estudava aritmética, música, latim e, mais tarde, sob tutoria do pai, aprendeu grego antigo, francês, alemão, italiano e até um pouco de hebraico... Porém, aquilo que, segundo a própria, mais terá marcado a sua infância foi uma devastadora epidemia de gripe, que assolou Hampshire no Inverno de 1837. Com a família e os criados infectados, a jovem de 16 anos assumiu o papel de enfermeira, vigiando os pacientes, ministrando-lhes sais variados, poções diversas e até um preparado bizarro, o vinho de ipecacuanha, uma planta brasileira com poderosas propriedades eméticas (na língua tupi, "ipecacuanha" significa "pénis de pato"). Terá descoberto então um destino, uma vocação que, segundo os seus biógrafos, despontou sob a forma de uma epifania ou diálogo místico com Deus, ocorrido quando a jovem inquieta se encontrava sentada à sombra de um cedro. "Deus falou comigo e chamou-me ao Seu serviço", dirá ela, anos depois. Na altura, porém, o caminho ainda não era claro, longe disso. Havia, desde logo, que vencer a frontal oposição dos pais, especialmente da mãe, uma mulher de grandes ambições sociais, que esperavam que Parthenope e Florence seguissem o caminho convencional das jovens de classe alta do seu tempo e se casassem com um bom partido e um apelido ilustre, que cuidasse e mandasse nelas até à morte. Para piorar as coisas, a enfermagem era então considerada uma actividade de mulheres de baixa condição social, que tinham fama de alcoólicas e promíscuas, e uma senhora, mesmo quando se encontrava doente, jamais era internada num hospital, sendo tratada em casa ou, quando muito, numa clínica de repouso nos Alpes ou numa estação termal alemã ou francesa. O dr. Richard Fowler, um médico de Salisbury que visitou os Nightingale na sua opulenta casa de Embley Park, permaneceu silencioso quando Florence aludiu à ideia de estudar enfermagem na sua clínica. Dois meses depois, a jovem tentou persuadir o pai, sem sucesso, a que a deixasse passar alguns meses em Dublin, em St. Vincents, um hospital das Irmãs da Caridade. Mas, se os pais a proibiam de se tornar enfermeira, Florence também resistia à ideia de casamento e acabou por rejeitar o impetuoso avanço de Richard Monckon Milnes, um deputado tory com considerável fortuna e grandes ambições literárias, homem de gostos sexuais bizarros, fascinado pelo Marquês de Sade e possuidor de uma das maiores bibliotecas de literatura pornográfica e licenciosa da Europa, um santuário secreto a que chamava "Afrodisiópolis".

No Outono de 1847, Charles e Selina Bracebridge, um casal de aristocratas amigos dos Nightingale, propõem-lhes que autorizem Florence a acompanhá-los num tour de três meses por Itália. Em Roma, a jovem conhece então Liz Herbert, uma mulher que, como muitas senhoras ricas do seu tempo, tinha por hábito visitar albergues e hospitais de indigentes geridos por freiras, como o das Irmãs de São Vicente de Paulo ou o das Irmãs do Sagrado Coração. No orfanato destas últimas, no centro de Roma, ao cimo da scalinata da Piazza di Spagna, Florence Nightingale travou um diálogo marcante com a madre superiora, que a exortou a seguir o caminho que Deus escolhera para ela, sem vacilar um segundo. No regresso a casa, o propósito de se tornar enfermeira tornou-se mais forte do que nunca, mas, para vencer a resistência dos pais, foi necessária uma nova viagem na companhia dos Bracebridge, um longo périplo pelo Egipto. Em Novembro de 1849, Florence Nightingale embarcaria a bordo do Marchioness of Breadalbane, com destino ao Cairo. Três dias de viagem de Marselha a Alexandria, com uma paragem de seis horas em Malta.

Chegaram a Alexandria a 18 de Novembro de 1849, hospedaram-se no Hotel Europe, gerido por um inglês, o preferido da clientela anglófona, que deixava o Hotel d"Orient para os franceses. Como era frequente com gente da classe dos Bracebridge e da sua jovem acompanhante, foram recebidos formalmente pelo representante de Sua Majestade no porto da cidade, Mr. Gilbert, que lhes garantiu, antes de mais, que aquela terra era segura, que pouco haveriam a temer, ainda que de vez em quanto se registassem alguns incidentes desagradáveis com estrangeiros: semanas atrás, tinham atirado umas coisas ao pastor protestante de Alexandria, quando este passava na rua; como gesto dissuasor, Mr. Gilbert mandou que um homem fosse preso e amarrado a um poste, pronto a ser açoitado, libertando-o logo a seguir, pois sabia ser inocente. Ficou o aviso, contudo, e bem explícito. As senhoras inglesas começaram por ir refrescar-se a um hamman, depois visitaram uma mesquita disfarçadas de muçulmanas, para horror do cônsul britânico, e Florence conseguiu entrar no asilo das Irmãs de Caridade, onde se deslocou três vezes, pelo menos, para ver de perto o trabalho das freiras junto dos pobres e dos doentes.

Nesta viagem ao Egipto, e como já alguém disse, "Nightingale escolheu os templos, Flaubert preferiu os bordéis" (ou, nas palavras mais castas de Anthony Sattin, ela fez uma jornada espiritual, ele uma digressão sensual). Gustave viajou na companhia de Maxime Du Camp, que se deslocou ao Egipto ao serviço do Ministério da Instrução para fotografar os monumentos, imagens que iriam ser usadas no ensino dos liceus franceses. Para ter também um título oficial que lhe abrisse portas e facilitasse a estadia, Du Camp conseguiu que o amigo obtivesse uma comissão do Ministério da Agricultura e Comércio para produzir um relatório sobre os sectores agrícola e industrial egípcios. A partir de Alexandria, deveriam visitar Rosetta, ou Rachid, a da lendária pedra a partir da qual Champollion conseguiu decifrar os hieróglifos egípcios, mas Flaubert mostrou-se pouco interessado nessas e noutras antiguidades (ainda que tenha tido o propósito de comprar uma múmia e levá-la para França...). Ao contrário de Florence Nightingale e de Maxime Du Camp, que afanosamente percorreram os templos e as mastabas, os interiores das pirâmides e as câmaras funerárias, o futuro autor de Bovary preferiu a discrição e a reserva, o silêncio expectante, dizendo ao amigo que queria ser "uma planta", estática mas presente, ou apenas "um olho", que tudo observa sem fazer qualquer ruído. A sua contenção era tal que, em vários momentos, Du Camp interrogou-o sobre se estava a apreciar a viagem ou se tudo não passava para ele de um monumental aborrecimento. É difícil adivinhar qual o estado de espírito de Gustave Flaubert ao longo desta sua viagem egípcia, pois, ao contrário da "Dama da Lâmpada", não deixou um diário íntimo, limitando-se a escrever cartas para a mãe, em Ruão, e para alguns amigos. Aquilo que conhecemos das suas muitas aventuras carnais nas margens do Nilo é-nos dado, sobretudo, pelos indiscretos escritos de Du Camp, um homem que não tem pejo em informar que, um dia, o cônsul francês em Alexandria mandou que uma escrava negra do mercado da cidade se despisse em público apenas porque queria contemplá-la nua. E é impressionante a frequência dos encontros daqueles franceses com meretrizes e odaliscas, podendo dizer-se, sem exagero, que o turismo sexual foi uma componente nuclear da excursão egípcia de Flaubert e Du Camp. A dado passo, e para cúmulo do voyeurismo, o autor de Educação Sentimental, pasme-se, chegou a pagar e a presenciar uma cena de sexo entre os seus condutores de burros e umas prostitutas junto ao velho Aqueduto de Alexandria.

Em contraste, Florence deixou-se invadir pela espiritualidade do lugar, deambulou pelos imensos cemitérios do Cairo ("a grande planície da morte", onde viu um rapazinho ser açoitado por um polícia), percorreu os templos com vagar e denodo, estabeleceu paralelos entre Osíris e Cristo. Desceu o Nilo até Luxor, durante semanas, numa jornada em que o navegar da dahabiya se fundiu numa atmosfera líquida, evanescente, na qual o sol abrasador fazia perder as diferenças entre a terra e o rio. Às tantas, tudo se confundia: o céu e as águas, a visão dos templos e das estátuas tombadas, a incompreensão perante a derrocada de um império que fora capaz de erguer tais colossos, a miséria abominável das crianças das aldeias, os uivos nocturnos dos chacais e dos cães selvagens. Escreveu, então, que se sentia imersa na "corrente do Tempo", como se a sua viagem de barco, vagarosa e compassada, encarnasse, também ela, o lento fluir dos séculos em que aquela civilização se forjara e perdera.

Flaubert, de seu lado, mostrar-se-ia muito mais contido nas suas divagações, mas, logo na primeira carta que escreveu, não deixou de dizer que pouco o impressionavam a paisagem do céu e deserto (salvo as miragens), mas que ficara deslumbrado pelas cidades e pelas gentes, contestando Victor Hugo, que um dia dissera: "Sinto-me mais próximo de Deus do que da humanidade". Espantou-se com um palhaço vestido de mulher numa estranha cerimónia de casamento a que assistiu pouco depois de aportar a Alexandria, com um velho prostituto que, num hamman, lhe ofereceu um "serviço completo" a troco de um modesto bakshee, com a história de um homem santo, um marabout, que os fiéis masturbavam várias vezes por dia, com o "Passo da Abelha", uma dança erótica antiquíssima, bailada por Kuchuk Hamen, uma mulher por quem se apaixonaria perdidamente. No Cairo, visitou o bordel de uma madame de Trieste, La Triestina, e numa carta para um amigo descreveu os pormenores do seu "estranho coito" com uma das raparigas, na qual ele e ela se olharam nos olhos, sem serem capazes de entender o que um e outro diziam.

Na época, viajar pelo Egipto era uma tarefa árdua e até perigosa. Thomas Cooke só inauguraria os cruzeiros no Nilo em 1869, o ano da abertura do Canal do Suez, em que Eça de Queirós visitaria o país, publicando quatro crónicas de viagem nas páginas deste jornal. Quando Florence e Gustave lá estiveram, não havia hotéis a sul do Cairo, nem casas para arrendar, e não existia um só museu no Egipto, apenas colecionadores particulares, geralmente estrangeiros, que, de quando em vez, acediam a mostrar as peças que tinham em suas casas. Flaubert e Du Camp passaram um par de meses no Cairo, a fotografar os monumentos, a caçar tartarugas na margem do rio, a visitar os bordéis da cidade. Hospedaram-se no Hotel du Nil, cujo gerente se chamava, pormenor importante, Monsieur Bouvaret. Ao fim de poucas semanas, e talvez sem se aperceber disso, o jovem aspirante a escritor foi contagiado pelo espírito do lugar, no qual a omnipresença da morte e dos mortos servia de permanente lição sobre a transitoriedade da vida. Nas cartas que escreveu para casa, aquele que outrora sonhara escrever um romance que abalasse a cena literária de Paris e lhe granjeasse imortal fama, passou a falar da vacuidade e da futilidade das aspirações terrenas, da estupidez inútil das nossas ambições efémeras e, invadido pelo torpor reinante, com os sentidos cansados por tantas interpelações visuais, olfactivas e tácteis, experienciou aquilo a que chamaria dépaysement, uma singular sensação de estranhamento e desorientação, de desenraizamento.

É curioso notarmos que, quer no caso de Flaubert, quer no de Florence Nightingale, as viagens pelo estrangeiro constituíram expedientes escapistas para resolver dramas domésticos ou impasses íntimos. A longa duração das jornadas feitas, as mil e uma oportunidades de contacto com o exótico, os momentos de langor e pausa, os lentos tempos de espera, tudo favorecia a reflexão, o questionamento interior e, ontem como hoje, a viagem era uma abreviatura na vida, um parêntesis na realidade dos dias. Dificilmente, porém, as viagens dos nossos dias podem proporcionar uma aventura interior idêntica à das jornadas de outrora. Desde logo, pela sua duração muito mais curta, de semanas ou breves dias, mas também, e sobretudo, porque as viagens actuais são, quase sempre, périplos de reconhecimento, não de verdadeiro conhecimento ou de autêntica descoberta. Com o mundo todo desvendado, os lugares a que vamos são-nos familiares e há muito vistos e nada de novo existe no Taj Mahal ou nas pirâmides do Cairo, excepto o facto de podermos dizer que lá estivemos e de confirmarmos se são, ou não, iguais aos milhares de imagens que deles temos. Na lógica do turismo contemporâneo, as cidades e os lugares configuram-se a gigantescas encenações, coreografias de estereótipos e clichés, espectáculos de déjá vu, shows a que sucessivamente assistimos, geralmente em cadência rápida, alucinante, e cujas gramática e cenografia raramente desafiam a imaginação ou surpreendem pelo imprevisto: a Lisboa das colinas e do rio, a Madrid dos museus, Itália monumental, Paris do Sena e da Torre, a Manhattan dos arranha-céus e das compras. As grandes marcas internacionais, Zara, Mango, Adidas, Apple, encarregam-se de uniformizar a paisagem e, no coração de cada capital tropeçamos em megastores iguaizinhas entre si, nos interiores e na oferta. E os hotéis e restaurantes, para que não haja surpresas, são escolhidos a partir das pontuações dadas pelos turistas que nos precederam. Por isso, na esmagadora maioria dos casos, uma viagem, mesmo feita a paragens remotas como as da China ou do Japão, dificilmente terá uma capacidade de desafio e um potencial formativo e transformador idênticos ao dos grands tours do passado. O que ganhámos em mobilidade e em facilidade de movimentos, perdemos em densidade, espiritual e humana.

No final das suas andanças pelo Egito, Florence Nightingale tomou a decisão inabalável de tornar-se enfermeira, foi para uma comunidade luterana na Alemanha, e daí para a Crimeia e a Turquia, onde se notabilizou como a "Dama da Lâmpada", o anjo misterioso que visitava os doentes madrugada dentro e que salvou milhares de vidas. Não muito depois de regressar a França, Gustave Flaubert iniciou a escrita de Madame Bovary, que o ocupou durante cinco anos de vida e lhe trouxe eterna glória nas letras e um processo por obscenidade, do qual sairia absolvido. Ela como enfermeira, ele como escritor, acabaram ambos salvos pelo poder dos faraós e um e outro confessariam, anos depois, que não tinham regressado os mesmos daquela viagem pelo Egipto. Algo que, nos dias de hoje, dificilmente sucederá aos que descem o Nilo em cruzeiros de luxo.

Historiador.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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