A coroa final do romantismo musical

Os "Gurrelieder" de Arnold Schönberg, estreados há 105 anos em Viena, são pela primeira vez apresentados hoje no Porto, na Casa da Música. Jovem barítono português André Baleiro é um dos solistas. O diretor da Casa antevê um dos acontecimentos musicais do ano.
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Obra ainda hoje pouco executada, em parte devido aos vastos recursos que exige, os Gurrelieder são indiscutivelmente um dos crepúsculos mais gloriosos da linguagem romântica na música ocidental, trazido à luz, paradoxalmente, apenas três meses antes da estreia dessa obra revolucionária e anti-romântica "par excellence" que é A Sagração da Primavera, de Stravinsky.

A performance de hoje, tida como um dos acontecimentos musicais de 2018 pelo próprio diretor da Casa da Música, António Jorge Pacheco, conta entre os intérpretes com o barítono André Baleiro, de 28 anos, que terá seu cargo o "papel" de Camponês.

Sobre o seu personagem, conta que "é um pequeno episódio no meio daquela história fantástica, mas dotado de uma personalidade especial, que lhe é conferida pelo imaginário fantasmagórico e assombrado que preside, quer àquilo que canto, quer à orquestração". Daí que defina como sua função "imprimir esses elementos e passar essas imagens vocal e dramaticamente, para enriquecer a fantasia do público".

No fundo, conclui, "face à conjugação de noite tempestuosa e eventos sobrenaturais que o rodeiam, o Camponês exprime o seu pavor, primeiro, e depois recorre à sua fé para esconjurar esses fenómenos que não percebe." Um e outro estados de alma "transparecem no caráter vocal do que canto: primeiro, linhas menos "legato", instáveis e agitadas; depois, mais "legato" e um perfil vocal que sugere prece e piedade."

Para ele, esta é simultaneamente "a estreia a cantar esta obra, a estreia com a Sinfónica do Porto e a estreia como solista na Casa da Música!". De Schönberg, diz, "só tinha cantado alguns Lieder do seu Livro dos Jardins Suspensos [de 1909], quando estudava em Berlim".

André fez estudos superiores na capital alemã: "Queria ir para a Alemanha pela minha afinidade natural com o repertório alemão, nomeadamente o Lied. E queria imergir naquela cultura e sociedade. Berlim, especificamente, tem uma riqueza cultural enorme, quer de concertos e óperas, que a tornam "imbatível" entre as cidades alemãs. Depois, tem também uma brilhante tradição teatral e para mim, enquanto cantor, é muito importante essa educação da esfera teatral, pois nós também somos atores! Na verdade, nesse ano concorri só para Berlim. Tive sorte!"

Regressou a Lisboa em 2016 e nesse mesmo ano venceu um dos mais importantes concursos de Lied (canção de câmara em língua alemã) do mundo: o Concurso Robert Schumann de Zwickau. "Foi muito importante", admite, "pois tive depois vários concertos que foram consequência direta dessa vitória e convites para outros - olhe, este da Casa da Música, por exemplo - que foram reflexo indireto dessa vitória, o que percebo pelas referências que fazem quando me abordam."

No ano passado, esteve em destaque noutro importante concurso, com a atribuição do Prémio de Encorajamento do Concurso Das Lied: "É um concurso mais recente, mas já muito conceituado, criado pelo barítono Thomas Quasthoff em Berlim, mas no ano passado realizou-se em Heidelberg." Um cantor português concentrado no Lied não é de todo comum: "Sim, é uma inclinação natural minha e, estudando na Alemanha e com os concursos e concertos, pude preparar bem um repertório já apreciável. Agrada-me muito a ligação de voz e piano, e de música e poesia", explica.

Daqui para a frente, pretende "manter uma parcela significativa de Lied e canção de câmara em geral na minha atividade, mas sem descurar a evolução no repertório operático, universo em que entrei mais recentemente e que tenho vontade de aprofundar." Neste campo, destaca duas "aventuras" bem recentes: "O papel de Tarquinius no Rape of Lucretia, de Britten, no São Carlos e o de Figaro do Barbeiro de Sevilha na Ópera de Câmara de Munique [no Teatro Cuvilliés]".

E depois dos Gurrelieder? "Tenho um recital a 10 de março, no British Council [Lisboa], todo dedicado a Britten."

Por uma noite, toda a gente gostou de Schönberg

A data de 23 de fevereiro de 1913, dia da estreia dos Gurrelieder, sob a direção do compositor Franz Schreker, foi o maior triunfo pessoal da carreira de Schönberg. Nessa noite, o compositor "viu" a Sala Dourada do Musikverein a seus pés e teve do seu lado, unânime, a opinião pública da sua Viena natal, primeira e última vez, aliás, que tal lhe sucederia.

Mas, provavelmente, foi o próprio Schönberg, então com 38 anos, quem primeiro relativizou e esqueceu esse triunfo. Ele, mais que ninguém, sabia o que esse êxito valia (ou não valia...): íntegro como sempre foi, convicto do princípio do progresso do material e linguagem musical e consciente do seu lugar na evolução da música germânica, o "revolucionário" que já então era Schönberg não estava disposto a desviar-se nem um milímetro da rota que encetara e que em 1913 assumia muito claramente a abolição do sistema tonal na música, sistema esse que os Gurrelieder (datados de 1900-01) ainda caucionam.

E não teve que esperar muito pelo "choque de realidade": logo a 31 de março, na mesma sala, aconteceu o "concerto das bofetadas", um dos maiores escândalos nos anais musicais de Viena. No programa, obras suas e de Anton Webern, Alban Berg, Alexander Zemlinsky e Gustav Mahler. Schönberg era o maestro, mas nem conseguiu terminar o concerto, face à batalha campal que se desencadeou na sala. Foi a "resposta" do público ao inaudito que lhe foi "servido" nessa noite, estabelecendo-se o confronto das inevitáveis facções pró e contra, a questão não sendo resolvida senão com intervenção da polícia! Mas essa era a música em que Schönberg acreditava em 1913. O escândalo passou, as ondas de choque esmoreceram, e ele prosseguiu resoluto o seu caminho. No final, para o bem e para o mal, Arnold Schönberg mudou o curso da história da música ocidental.

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