A contenda da UE com a AstraZeneca: cinco lições
A União Europeia (UE) foi humilhada pela AstraZeneca e pelo Reino Unido. Enquanto Boris Johnson está a gozar o seu "momento Malvinas" (a manchete do Mail on Sunday), a UE está a lamber as feridas causadas por um comportamento bem-intencionado, mas incompetente, das autoridade da UE. A batalha não deve ser vista em termos de relações públicas. Uma vez que a perspetiva de obter as vacinas prometidas dentro do prazo é sombria, os custos são principalmente humanos e económicos. Não tinha de ser assim e devemos tirar algumas lições desta experiência dececionante.
Lição n.º 1: os músculos não são suficientes, é também necessário um cérebro. Não é suficiente puxar dos recursos, é importante agir com inteligência.
Em princípio, um grande bloco comercial como a UE está em melhor posição para negociar a compra de vacinas do que os Estados membros individualmente, especialmente os pequenos. O poder é importante quando se trata de lidar com empresas farmacêuticas que produzem bens desejados por todos. Isto foi bem ilustrado pelo sucesso americano ao garantir uma quantidade impressionante de vacinas. No entanto, como aprendemos na Bíblia, Golias pode ser derrotado pelo pequeno e inteligente David. Isto foi bem ilustrado pelo sucesso israelita ao garantir uma quantidade impressionante de vacinas.
A UE não estava apenas a negociar lentamente, mas também assinou um contrato com a AstraZeneca que permitia a esta empresa mostrar à UE o dedo médio sem punições palpáveis. Ainda não conhecemos todos os detalhes, mas é claro que os negociadores da UE e os seus advogados foram enganados não apenas pela AstraZeneca, mas também por outros clientes capazes de garantir melhores negócios com esta empresa. Embora seja provavelmente verdade que a UE obteve preços mais baixos da AstraZeneca do que outros clientes, as poupanças feitas são insignificantes em comparação com os custos de uma vacinação atrasada.
Lição n.º 2: é difícil agir com inteligência quando a transparência e a responsabilidade são limitadas.
As negociações com as empresas farmacêuticas são em parte confidenciais, mas não havia razão para a UE manter os Estados membros e a sua população no escuro até ao ultrajante anúncio da AstraZeneca na véspera da entrega combinada. Um certo grau de transparência permitiria à UE corrigir erros em vez de cair na armadilha delineada pela aparente aliança da AstraZeneca com o Reino Unido. Talvez a confiança errada dos negociadores da UE tenha sido causada pelos fracos mecanismos de responsabilização. Uma asneira de proporções semelhantes a nível nacional ou municipal causaria uma série de demissões de pessoas politicamente responsáveis pela trapalhada.
Até agora, nenhuma autoridade da UE apresentou a sua demissão. Nem recebemos explicações satisfatórias para a série de decisões duvidosas tomadas. Porque é que os contratos com a AstraZeneca, mas também com a Pfizer, foram feitos tão tarde? A CE cedeu ao lóbi alemão e francês para oferecer contratos duvidosos aos seus campeões nacionais, BioNTech e Sanofi? Dublin foi consultada antes da decisão desastrosa de erigir uma fronteira rígida com a Irlanda do Norte, e se não foi, porquê?
Lição n.º 3: a saúde é alta política agora. Uma "guerra" contra o vírus exige um novo pensamento sobre segurança e instituições adequadas.
A política da pandemia tem sido amplamente impulsionada pelo medo e, nesse sentido, pode ser concebida como um tipo de política de segurança, embora de um tipo diferente da segurança militar tradicional. Quando o presidente Macron declarou que "estamos em guerra", não tinha em mente o porta-aviões Charles de Gaulle atacado pelo vírus. Ele tentou justificar as medidas de emergência próprias de tempo de guerra adotadas para combater a pandemia que causou mortes e devastação económica.
Vacinas, em vez de aviões, são armas essenciais contra o "inimigo" invisível, o que sugere que, nas últimas décadas, gastámos muito dinheiro para preparar uma guerra "errada". Na verdade, o porta-aviões francês "armado até aos dentes" e os milhares de marinheiros dentro dele foram impotentes no combate à covid-19. Isso não significa que as ameaças nucleares ou terroristas vão desaparecer, mas os cidadãos exigirão medidas de segurança sanitária diferentes das que implementámos até agora. As instituições de segurança e os seus orçamentos terão de ser repensados e ajustados às novas perceções de ameaças, não apenas aquelas causadas por emergências de saúde, mas também pela degradação ambiental.
Lição n.º 4: o sistema policêntrico de governança da UE está adequado ao mundo de Grotius e Kant, mas não ao mundo de Hobbes e Maquiavel.
A UE pode e deve desempenhar um papel importante na nova arquitetura de segurança, mas apenas se compreendermos onde estão os seus pontos fortes e fracos. A UE raramente é capaz de responder rapidamente a qualquer crise grave porque primeiro precisa de definir quais os seus interesses comuns num determinado caso. Este processo de definição dos interesses comuns de 27 Estados membros é complexo e demorado; o resultado geralmente é o menor denominador comum.
Além disso, a resposta da UE às crises de segurança depende das contribuições financeiras e institucionais dos Estados membros em mão-de-obra e dinheiro. Tudo isto torna difícil para a UE agir de forma instrumental, compensando e punindo empresas e Estados que se comportam mal.
A UE é muito mais adequada para criar estruturas institucionais e estabelecer regras de comportamento legítimo do que para atuar como um corpo de bombeiros eficaz quando surgem problemas de segurança.
A deliberação e a confiança no consenso impedem a UE de empreender algumas ações ousadas e rápidas; mas também garante que a União não tome medidas precipitadas que viria a lamentar mais tarde. Infelizmente, no caso AstraZeneca, a Comissão falhou em adotar a deliberação e o consenso, o que fez que a sua atuação não fosse eficaz nem legítima.
Lição n.º 5: numa Europa em que o nacionalismo cresce, a UE deve ater-se ao multilateralismo, ou então morre. A noção de nacionalismo europeu é uma contradição nos termos.
Se a força da UE reside em estabelecer regras de comportamento legítimo, deve dar o exemplo. O projeto de integração europeia é derrotar, não abraçar o nacionalismo. A ideia de que 27 Estados irão puxar dos seus recursos para intimidar aqueles que estão no seu caminho é contraproducente.
As pessoas não se reunirão sob uma bandeira europeia para promover o egoísmo nacional e a xenofobia. Esta é uma especialidade de políticos populistas que são hostis à Europa. Existem melhores formas de projetar poder por parte da UE. A UE é ouvida quando defende o Estado de direito e a igualdade de oportunidades. Se a UE for atrás das suas próprias ambições egoístas à custa dos outros, então será olhada com suspeita e atingida por intervenientes fortes, enquanto é enganada pelos fracos.
Em junho de 1991, confrontado com a crise na ex-Jugoslávia, Jacques Poos, ministro dos Negócios Estrangeiros do Luxemburgo na presidência da UE, declarou: "Esta é a hora da Europa." Poos criou expectativas que a UE não foi capaz de cumprir. Três décadas depois, a UE não está mais bem equipada para lidar com as crises, mas entretanto surgiram novos desafios. Não estou a sugerir a criação de um exército europeu de epidemiologistas, mas a UE poderia projetar um sistema que reúna os recursos diplomáticos, militares, jurídicos, financeiros, médicos e ambientais do continente para enfrentar as novas ameaças à segurança. Talvez uma disputa com a AstraZeneca e o Reino Unido nos ajude a equipar melhor a UE para a próxima crise.
Professor de Política Europeia na Universidade de Oxford e na Universidade de Veneza, Ca Foscari