"A Constituição de 1822 é um farol, é uma referência e representa um marco irreversível"
Muitas vezes fala-se da Constituição Portuguesa de 1822 dizendo que vem na mesma linha de outras, nomeadamente da espanhola de Cádis, de 1812. Há, contudo, um elemento que a diferencia: a preocupação em salvaguardar alguns Direitos Humanos. Essa originalidade explica-se como?
A génese da Constituição de 1822 e do Movimento de 1820 é muito curiosa, tendo em conta que vimos das Invasões Francesas e de uma situação paradoxal que, em Portugal - ao contrário de Espanha -, permitiu a conservação da independência. Quando dizemos "a corte saiu para o Brasil em 1807", a verdade é que saiu, mas com isso preservou a independência portuguesa. Nunca perdemos a independência.
Porque o rei não é deposto e substituído por um irmão de Napoleão, como aconteceu a Fernando VII em Espanha.
Exatamente. Quando Junot chega aqui, o povo diz que "ficou a ver navios". A expressão é essa. Só aqui ficou seis meses. E porquê? Porque não governa. Não podia governar porque, levada a corte pelos navios, a independência de Portugal está salvaguardada com o rei no Rio de Janeiro. Isso deve-se, claramente, à aliança britânica. Indiscutivelmente. Esta relação com Inglaterra tem também grande importância, quando falamos da Revolução de 1820, porque esta é determinada por um excesso. Um excesso de permanência. Os ingleses estiveram tempo a mais.
Está a falar da Regência?
Estou. Os ingleses estiveram, de facto, tempo a mais e depois há uma circunstância tremenda que causa desagrado e repulsa, em termos populares e em termos generalizados, que é a condenação à morte de Gomes Freire de Andrade. Gomes Freire de Andrade era um oficial general distinto e exemplar, um oficial general do tempo antigo, de antes do serviço militar obrigatório, do tempo em que os Exércitos eram mercenários e profissionais. Por isso, vemos que Gomes Freire de Andrade, general, a lutar na Legião Portuguesa de Napoleão, mas também como comandante do nosso Regimento da Infantaria, o célebre Infantaria 4 de Campo de Ourique, em Lisboa.
Portanto, o excecionalismo de Portugal na época das Guerras Napoleónicas tem que ver com a chegada da corte ao Rio de Janeiro no início de 1808 e as suas consequências várias.
Sim. Veja, no dia 16 de dezembro de 1815, cria-se o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Este dado é muito importante, uma vez que, se é facto que foi no dia 7 de setembro de 1822 o príncipe D. Pedro, o regente, o imperador, o rei, no futuro, declarou a Independência do Brasil através do célebre Grito do Ipiranga, também verdadeiramente o Brasil já era independente.
Tinha deixado de ser uma colónia em 1815.
Tinha deixado de ser colónia em 16 de dezembro de 1815. Este aspeto é particularmente importante, uma vez que se trata de uma das razões de queixa que leva a acelerar a Revolução de 1820. Era inaceitável, dizia-se, que o rei estivesse ausente e Portugal se tivesse tornado colónia do Brasil. Isso era uma menorização. Era o que diziam Manuel Fernandes Tomás, Ferreira Borges, Silva Carvalho. Houve uma inversão, que perante a Invasão Napoleónica foi necessária, mas depois tornou-se desnecessária, não se justificando o prolongamento da presença inglesa.
Mas o rei volta, contrariado, mas volta, em 1821.
O rei volta, meio contrariado sim, porque os seus principais conselheiros diziam que tinha de vir. Até porque a Constituição que estava a ser aprovada, tem vários domínios em que viria a ter uma influência extraordinária, mas há um domínio em específico que afeta D. João VI, o da subalternização do rei. Sobre isso, Passos Manuel dirá, mais tarde, que se tratou de rodear um monarca de instituições republicanas. De facto, tal como acontece relativamente à Constituição de Cádis de 1812, a Constituição de 1822 é de matriz republicana. Não é que tenha sido proclamada a República, mas o rei passa a ter um papel subalterno. Por exemplo, não tem direito de veto relativamente às leis e isso diminui a sua posição. Mas a História diz-nos hoje que D. João VI, de quem os brasileiros sempre tiveram melhor opinião dos que os portugueses, mesmo relativamente à Constituição de 1822, teve uma inteligência muito grande e jura a Constituição. Isto apesar de estar por esclarecer politicamente, depois, o impacto da Vilafrancada e da Abrilada - em Vila Franca terá prometido uma Constituição, mas estaria a falar de uma Carta Constitucional? O jurar da Constituição é um facto muito importante e contrasta, de novo, com o seu cunhado, rei de Espanha, Fernando VII, que não o fez relativamente às instituições espanholas. Há uma diferença muito grande na evolução ibérica neste aspeto.
Além da Constituição de 1822 ser republicana, como diz, insisto na pergunta se, no que respeita aos Direitos Humanos, é além de republicana também muito avançada? Por exemplo, a inviolabilidade da casa.
A sua pergunta coloca a questão essencial que é aquilo que adquirimos irreversivelmente nas instituições portuguesas, a partir de 1822. A ideia de soberania popular e os Direitos Fundamentais, tudo isso está aqui consagrado. Tornam-se elementos extraordinariamente presentes ao longo do século XIX - apesar de termos tido uma guerra civil - e não podemos esquecer aquilo que o romancista e, aliás, diplomata também Álvaro Guerra nos disse, num livro que deve ser lido e relido, que é Razões de Coração: Álvaro Guerra trata do tempo em que a presença napoleónica se faz sentir. E o que é que diz? Que em Portugal há uma contradição, mas também uma complementaridade. A contradição entre o facto de resistirmos a Napoleão e querermos preservar a independência, sem deixar em simultâneo de simpatizar com a causa das liberdades. De facto, a Constituição Portuguesa de 1822 é influenciada pelas constituições de Inglaterra (não escrita, a experiência da Revolução de 1688), dos Estados Unidos da América e de França. Mas na Constituição Portuguesa de 1822, há um aspeto muito interessante que se nota, designadamente, no número de citações no longo do debate constituinte. O autor mais citado é Montesquieu. O professor José Luís Cardoso, num livro muito bom sobre a Revolução de 1820, tem o cuidado de fazer o elenco das citações, e esta relevância de Montesquieu é muito importante, porque Montesquieu, ao contrário de Rousseau, salvaguarda a ideia da separação e independência de poderes. Portanto, além dos Direitos Fundamentais e da soberania popular há a ideia de cidadãos e não-súbditos e isso é irreversível. Apesar da tentativa de instauração de um Regime Absolutista por D. Miguel, a verdade é que o povo e as elites interiorizaram essas ideias de não serem súbditos, da liberdade de imprensa e do fim da Inquisição.
O cidadão não volta a ser súbdito?
Não volta a ser súbdito. Nunca mais.
Apesar de tudo, é preciso olharmos para a época que se vivia quando a Constituição foi feita: o voto era censitário, as mulheres estavam excluídas e, sobretudo, a escravatura não é mencionada, apesar de não existir no território europeu de Portugal desde o marquês de Pombal.
Exatamente. Não é um documento perfeito, mas é um documento em que há um conjunto de elementos que se tornam irreversíveis e isso é muito importante. Apesar da tentativa de D. Miguel e da guerra civil, já não havia qualquer possibilidade. A Revolução de 1820 é no Porto, tem a ver com a tradição liberal da cidade, tem a ver com o papel absolutamente fundamental de várias personalidades, em especial Manuel Fernandes Tomás. Só um mês depois é que a revolução chega a Lisboa e há tentativas de limitar a soberania da Assembleia Constituinte, mas é ultrapassado o movimento contrarrevolucionário. Sendo consagrada uma Assembleia Constituinte que vai proclamar aspetos absolutamente fundamentais, designadamente em relação à ideia de cidadania, soberania popular e separação de poderes e liberdade de imprensa.
Esta Constituição é efémera. Vigorou durante pouco mais de um ano e depois ressuscita em 1836, por ocasião da Revolução de Setembro, por um período também muito curto. A Carta Constitucional de 1826 vai inspirar-se nela?
Sim, claramente. Esse é outro dado muito importante, a Constituição de 1822 é um farol, é uma referência e representa um marco irreversível. E a verdade é que a lógica da Constituição de 1822 não é uma lógica outorgada, como a Carta. Parte-se da legitimidade própria da Assembleia Constituinte. Herculano é crítico da Revolução de 1836, depois da vitória e da morte do rei D. Pedro, que morre pouco tempo depois. É preciso explicar que a Europa vai apoiar D. Pedro IV de Portugal em 1830, em virtude de dois acontecimentos que vão mudar as coisas e retirar qualquer possibilidade de sucesso a D. Miguel e aos absolutistas. Por um lado, a Revolução de julho de 1830, em França, com Luís Filipe, e em simultâneo, a mudança de governo pela eleição dos liberais que vão substituir os conservadores em Inglaterra. Isto muda tudo, porque ambos os países vão apoiar D. Pedro e a causa liberal. Em 1834 é assinada a Convenção de Évora-Monte e é a Carta Constitucional de D. Pedro, de 1826, que vai entrar em vigor, mas fugazmente, uma vez que em setembro de 1836 temos a revolução em que a grande referência é Passos Manuel. Passos Manuel vai buscar a Constituição de 1822 e a Constituição de 1838 é influenciada pela de 1822. Ou seja, a questão do equilíbrio entre os diferentes poderes é corrigida em 1838. E Alexandre Herculano, que tinha sido contra a Revolução de 1836, vai ser partidário da Constituição de 1838 que vigorou apenas quatro anos. Em 1842, Costa Cabral restaura a Carta Constitucional, mas não cumpre aquilo que promete. Porque ao proclamar o regresso da Carta Constitucional, diz que tem de ser corrigida por faltar o elemento da legitimidade popular, designadamente em relação a eleições livres e aos cidadãos, mas não cumpre. E Alexandre Herculano põe na ordem do dia alguns dos aspetos que precisavam de correção, nomeadamente democratizar a Carta Constitucional, no sentido de reforçar a legitimidade do voto para garantir uma maior e melhor participação dos cidadãos. Simultaneamente, vai também proceder a uma renovação da legitimidade, uma vez que é uma Assembleia Constituinte com poderes que vai aprovar o Ato Adicional, nomeadamente o Ato Adicional de 1852. Este aspeto é muito importante porque em 1852, 30 anos depois da Constituição de 1822, iriam repor-se as coisas. Ou seja, seria reposta uma Lei Fundamental a partir da Carta Constitucional, isto é, há um compromisso que permite manter a Carta democratizada.
Mesmo a Constituição de 1933, do Estado Novo, que substituiu a da Primeira República, de 1911, vai beber a este espírito de 1822?
Mesmo a de 1933, é muito curioso. Há o famigerado artigo 8.º que esvazia - o que é típico de um sistema autoritário -, o que está proclamado relativamente aos Direitos Fundamentais. Na prática, o artigo 8.º consagra direitos, mas limita-os. Isto deve-se ao facto de Salazar ser um jurista e ter consciência de que a cultura jurídica e política tinha interiorizado os Direitos Fundamentais. Claro que sabemos que o regime do Estado Novo não respeitava os Direitos Fundamentais, mas formalmente consagrou-os. O que retiro daqui é que a tradição que encontramos a partir de 1822 é tão forte, que até a Constituição de 1933 teve a necessidade de consagrar um conjunto formal de direitos.
Mas é preciso chegar a 1976, à atual Constituição nascida do 25 de Abril, para limar as arestas que não foram limadas em 1822, nem depois e os direitos de todos estarem finalmente expressos. A Constituição de 1976 é uma filha da de 1822?
Naturalmente que sim. A Constituição de 1976 está na tradição iniciada em 1820 e mais, como diz Jaime Cortesão, está na tradição dos fatores democráticos da formação de Portugal.
leonidio.ferreira@dn.pt