A Constituição, a pistola e os cannoli
A Constituição italiana, à semelhança da portuguesa, diz que compete ao presidente da República nomear os ministros sob proposta do primeiro-ministro. O caos que antecedeu a formação do governo italiano gerou-se em volta da interpretação a dar à palavra "proposta". Em O Padrinho de Coppola, Dom Corleone fazia propostas que os outros não podiam recusar. Será que o presidente podia recusar os nomes propostos pelo primeiro-ministro que ele próprio acabava de indigitar? Podia. Na história italiana já aconteceu, por exemplo, quando Berlusconi queria o seu advogado pessoal no Ministério da Justiça, em 1994. O presidente não quis e o advogado passou para a Defesa. Algo parecido se deu no impasse de fim de maio. Sergio Mattarella não queria Paolo Savona nas Finanças e o prof. Savona foi para os Assuntos Europeus. Só que, desta vez, tudo se passou não no secretismo das negociações, mas sim à luzinha dos smartphones dos jovens vencedores das legislativas, que tuitavam nervosamente demissões "irrevogáveis" e impeachment.
É verdade que, pela primeira vez, o presidente pedia uma alteração à lista de ministros não alegando apenas um conflito de interesses, mas pondo em causa as ideias do candidato. Acontece que Savona é um teórico da saída do euro. Acontece também que os partidos da atual maioria (Liga e Movimento 5 Estrelas), quando não se manifestaram contra o euro, mostraram-se no mínimo confusos. A cartada de um ministro assumidamente antieuro (e inimigo pessoal de Draghi, dizem os bem informados) reabria um debate que na realidade nunca se fechou, mas com o lóbi italexit no posto de comando. O que, de imediato, poderia causar efeitos desastrosos para a Itália e não só.
Naturalmente o impasse foi ocasião para muitos eurocríticos se queixarem da "ditadura dos mercados financeiros". Em Portugal alguém se terá lembrado da teimosia de Cavaco Silva face à ideia de indigitar António Costa, esquecendo que tanto a equipa dos ministros de Costa como os acordos à esquerda nem sequer previam a renegociação da dívida. Quer se goste quer não, as diferenças parecem-me evidentes. As notícias de golpe, portanto, foram um pouco exageradas. Resumindo, numa perspetiva luso-italiana, podemos dizer que, enquanto em Portugal, exagerando as notícias da morte assistida, se gritava "Não matem os velhinhos", em Itália um velhinho explicava aos "jovens turcos" como atua um presidente que, não sendo subversivo, ainda não está eutanasiado.
No entanto, a crise revelou outro cenário preocupante: numas eleições antecipadas os soberanistas italianos, passando por vítimas dos plutocratas mundiais, ganhariam com uma maioria ainda mais folgada. Daí o debate sobre como e quando travá-los. O boss Clemenza (ainda em O Padrinho) tem ideias claras sobre como lidar com os adversários. Chama-se "clemência", mas é a brincar. Manda matar um traidor dentro do carro, enquanto ele sai para fazer chichi. Depois volta e pede ao killer para largar a pistola e levar os cannoli, saborosos bolos de creme sicilianos ("leave the gun, take the cannoli"). "Hitler deveria ter sido travado em Munique", costuma dizer.
Em Itália o debate remonta a 1922. O que teria sido da história mundial se o rei não tivesse nomeado Mussolini primeiro-ministro? Talvez nem Hitler chegasse a Munique. Então que tal prevenir em fase de alianças partidárias? A direita italiana é um problema. Ao contrário dos gaullistas e dos centristas alemães, nas suas coligações embarcou sempre todos: pós-fascistas, pós-independentistas, pós-humanitários... Ainda nesta crise, com as eleições antecipadas à vista e o spread a voar até se perder de vista, o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, falando ao Corriere della Sera exortava a direita a juntar-se, Liga incluída. "É um problema dele", disse o senador Casini, antigo parceiro e presidente da Câmara dos Deputados, numa entrevista paralela. Acho que é um problema de todos. A família da direita europeia devia reunir-se e discutir isto ao jantar. Levem cannoli para sobremesa.
Jornalista italiano freelance