A confissão de A a Zita Seabra
O parto de Zita Seabra neste Foi Assim aconteceu há menos de cem horas. Lançado com pompa esta quinta-feira no histórico Quartel do Carmo, na presença de Mário Soares, Pacheco Pereira e Carlos Gaspar, é o seu segundo livro que recolhe as memórias da passagem militante pelo Partido Comunista Português, após ter publicado O Nome das Coisas, em 1989.
Confesso que ao saber da edição deste Foi Assim esperava um derrame de inconfidências sobre o (sub)mundo comunista português, de como se dera o fim da sua militância e ficar o Partido (em maiúsculas, como a autora sempre se lhe refere) posto a nu como poucos mais poderiam fazer. Ou não fosse este livro escrito por alguém que conhece bastante bem a mais antiga estrutura partidária portuguesa, que ajudou a construir, a implantar, a ampliar e que, ao fim de um percurso de décadas, bateu com a porta e foi posta fora de casa. Afinal, nem todos se podem gabar de ter tido um gabinete no 6.º andar da Soeiro (o edifício-sede do PCP), como foi o seu caso...
Esperava, também, uma derrama, pois a autora poderia sentir-se à vontade para cobrar o imposto sobre o que lhe aconteceu a 6 de Maio e a 13 de Novembro de 1988 - quando, respectivamente, foi expulsa da Comissão Política e do Comité Central do PCP - e não esqueceu o veredicto de Cunhal de que nunca mais seria ninguém.
Nada mais errado e, surpresa das surpresas, o leitor que se interessa pela vida política do País, e pela sua história também, tem aqui um volume de 443 páginas que faz um retrato impressionante do que foram os anos que antecederam a queda do regime salazarista, o 25 de Abril de 1974 e a luta pela democratização da sociedade portuguesa. Contado por quem praticou intensamente a luta para o derrube do fascismo e se entediou com a aposta partidária de manter o "processo revolucionário em curso e o caminho armado para o socialismo" como proposta programática numa altura em que "tínhamos perdido toda a influência nos intelectuais por causa disso e que o Partido devia entrar na plena legalidade e na via eleitoral e democrática para o socialismo, e não na via subversiva".
Não sei qual será o leitor alvo destas memórias. Se os comunistas, que irão ignorá-lo, decerto, se os leitores da direita, que se sentirão pouco satisfeitos com o discurso educado e lúcido de quem partiu para o posicionamento político simétrico... Resta, no entanto, uma grande plateia de leitores que se sentirão confortáveis a ler uma confissão deste tamanho, pois poderão ver, quase como se de um filme se tratasse, quatro décadas da história política portuguesa descritas na primeira pessoa. E este tipo de ensaios não é coisa corriqueira em Portugal!
Até porque a maioria dos memorialistas não o sabem fazer com a precisão de palavras que a autora conseguiu, não têm a arte para em parágrafos concisos juntar as ideias e fazer um princípio, meio e fim, nem conseguem guardar os rancores dentro do baú do deve e haver de uma acção em que também foram protagonistas. Zita Seabra consegue-o e surpreende porque não era disso que se estava à espera. Surpresa, sim, já o referimos, que permite lê-la sem achar que se está num julgamento parcial.
Tudo começa com a adesão ao PCP quando frequentava o 6.º ano (actual 10.º) do secundário. Zita Seabra garante que não foi recrutada mas que viu no Partido "a trincheira normal onde teria de estar se queria combater a sério a ditadura e lutar por um Portugal livre e democrático". Assim sendo, aos 15 anos era militante e quase deixara para trás a sua maior ambição, ser bailarina clássica. As leituras de Jorge Amado fazem-na querer ter a dimensão heróica e romântica da personagem Mariana, os livros proibidos de Sartre, Simone de Beauvoir, Stefan Zweig, Boris Vian, entre outros, ajudam a entender o que o Avante! e O Militante completarão. Mas é ao ler o Rumo à Vitória, de Álvaro Cunhal, que a vivência clandestina se tornará num "momento inesquecível" e que Zita Seabra fica "convicta de que ia encontrar (...) o 'homem novo' que nascia do comunismo". Com tanta convicção que, tal como acontecera a Cunhal, a jovem comunista queria ser filha adoptiva da classe operária e poucas dúvidas teve nas suas opções políticas ao longo dos tempos.
É curioso que desde o início se entende que será Álvaro Cunhal o seu principal interlocutor nestas memórias, basta ver que em 23 páginas do primeiro capítulo a referência ao seu nome fica registada vinte vezes e que a cada curva do caminho será o mítico secretário-geral invocado como origem das decisões que o colectivo toma em relação a si.
A biografia política que vai escrevendo irá retratar a sua vida na clandestinidade, o relacionamento cego perante o controleiro, a situação das mulheres (as companheiras e as amigas) no Partido, as prisões, as actividades de propaganda, os congressos ilegais do PCP, a sua anunciada detenção pela PIDE devido ao seu papel na UEC e, chegados ao capítulo 8, um dos mais emocionantes relatos do que foram os dias que mediaram entre a intentona de 16 de Março de 1974, o levantamento das Forças Armadas a 25 de Abril, a libertação dos presos políticos, o regresso de Álvaro Cunhal a Portugal, o primeiro 1.º de Maio em liberdade e todo o processo de implantação político-partidário até ao 25 de Novembro de 1975.
É curioso ver, também aqui, que a forma como a actual vice-presidente do Grupo Parlamentar do PSD escreve não está distante do que qualquer membro do PCP poderia fazer ao relatar esses tempos de um Verão Quente, a forma como a direcção do PCP acompanhava diariamente as movimentações políticas em todo o País, a elaboração da Constituinte e a posição do Partido face à realização de eleições para o poder local, Assembleia e Presidência da República. As citações de Lenine que povoam o livro, bem como de todos os clássicos do marxismo-leninismo, surpreendem ao mesmo tempo que dão cor ao retrato da época.
É ainda curioso saborear o suspense a que o leitor está sujeito nestas memórias porque, entrado na segunda metade do livro, ainda não surgiram os desentendimentos que levarão Zita a deixar o PCP e que desde o momento em que adquirira Foi Assim estava à espera de encontrar. E só irá deparar-se com a violência dessa quebra de confiança a poucas dezenas de páginas do fim, nos relatos de uma visita à URSS e em algumas (intensas) desfeitas que a vida partidária lhe fizera.
Não será por acaso que a implosão de uma vida dedicada ao Partido só atinge um breve auge a poucas páginas do fim, e que o colapso da sociedade socialista mereça também pouco espaço, se bem que marcante, a não ser porque a relação se entranhou e o seu balanço estranha. É uma sensação que está presente em toda a narrativa, doce e amarga como só pode acontecer a quem se entregou a uma causa e que ao descrevê-la, duas décadas depois do fim, não esquece o que fez por si.|