A com-fusão da língua brasileira 

Publicado a
Atualizado a

O português é o de Camões, o alemão é o de Goethe, o italiano de Dante, o inglês de Shakespeare, o espanhol de Cervantes... a língua tem rosto, estilo, métrica, rima e uma forma de andar no mundo. Mas o português também tem Florbela e Caetano, e Caetano "gosta de sentir sua língua roçar a língua de Luís de Camões".

O Brasil tem uma língua que não é a materna e, mesmo sendo a do pai, não fala como o pai. A língua brasileira é uma com-fusão, uma pro-fusão de mundos que bailam entre si. O resultado? Algo "melondioso"* que envolve com uma fonética cheia de gingado em "ns", "s", "x" e "rs" e vogais bem ditas.

E essa língua é capaz de integrar o sabor das gentes e das histórias amargas, doces, azedas e salgadas. O Brasil é temperos e a ponta da língua reconhece.

Talvez a língua brasileira seja só uma fusão de intenções. Talvez seja a arte dos sobreviventes, o que ficou das diásporas e imigrações e dos arranjos e acordes possíveis. Porque os acordos da brasilidade são musicais e não estão em papel, são o movimento da capoeira. O nome do mato que escondia o indefinível, ninguém sabia dizer ser um jogo, uma dança ou uma luta. Definir é dar um fim, uma espécie de definhar. E não conseguir dar fim atordoa, afinal, o indefinível é incontrolável. Como diz a música "caboclo caminha por cima da folha, por baixo da folha, por todo o lugar, caminha..."; e não é o Pero Vaz...

Essa língua cabocla, bugre, latina, miscigenada, negra, nativa, de pele amarela, vermelha e sangue azul, essa tal língua brasileira, influenciou e influencia gerações. Seja pelas telenovelas (de um par de horas) seja pelas redes sociais (sem limites). Ela que tanto incomoda. Ah se incomoda, toca com a ponta tantos outros lugares, principalmente o que protege a ideia de uma língua única, limpinha com seus acentos e factos no lugar; e toca, sem pudor, a bela língua de Camões e os acordos ortográficos que criam maior ou menor erudição. Tudo é invenção. Ai esse Brasil chega e com ele chega Anitta, e rebola e tira do eixo tudo que parece certo e de boas maneiras. E chega! Eles pedem, chega!

O imigrante, o outro, a ex-colónia, mostram formas diferentes de viver e isso pode ser insuportável para quem um dia aventou, mesmo que brevemente, experimentar o mundo de outra forma, vestir-se com outras roupas, dançar outros ritmos, inclusive como gostaria, mesmo à revelia do olhar do pai. Saber possível o diverso exige suportar esse querer, eis a angustia. Isso é tão incomodo que fazemos uso da lei para estancar a sangria de desejos inconfessos. E não é de hoje, o expediente é antigo. Justiniano, lá pelos anos 530 d.C., na tentativa de manter o Império Romano já em decadência, fez o Corpus Iuris Civillis. Acreditava que o signo normativo seria a amalgama necessária para permitir que a marcha continuasse nos moldes idealizados um dia. Funcionou por um tempo. Toda a normatização é simplificadora e frágil. Marquês de Pombal, em 1758, também pela lei, definiu a língua portuguesa como oficial e proibiu a língua geral a fim de preservar a colónia Brasil das vozes nativas e outras línguas europeias que, ao transmitirem suas linguagens e signos, traziam junto a cultura e outras marchas. No mito grego de origem do discurso democrático foi quando os humanos assumiram a voz que a coisa complicou, os deuses se incomodaram e nos puniram. Nada é novo debaixo do céu.

A norma vem de cima para baixo, mas Anitta rebola de baixo para cima. E Tom Zé cria, ele, o tropicalista e o anti herói por excelência. O cantor, de 84 anos quer promover outra natureza de preservação, mas não usa da lei, o Zé sabe, usa a arte e o que contagia, essa fonética sedutora que num piscar de olhos já está na ponta da língua.

Nenhuma normatização é capaz, mesmo pela força, pelo massacre e violência, anular as diferenças e a diversidade. Aí o Zé vem e faz capoeira com as letras e com a voz. Ninguém entende bem o que é, mas é. E isso basta. É a língua brasileira. O músico lançou recentemente, em tempos de Bienal do livro de São Paulo, que homenageou Portugal e os 200 anos de independência do Brasil ao mesmo tempo (adoro nossas provocações metafóricas), o álbum Língua brasileira; e ali ele dá voz às histórias, ao passado e ao presente. O perigo? Subverte o tempo. Canta os orixás, relembra o encoberto, sacode a cortina e faz a gira.

Ele quer celebrar as especificidades e as riquezas desta língua com-fusa, pro-fusa em contraponto às narrativas simplificadoras de discursos únicos. Ninguém dança no MacDonalds, afinal. Mas isso tem um custo para quem está preocupado em demasia com a brancura dos colarinhos altos com ilhós.

Tom Zé faz a reza, mas não faz religião de culto, faz a que dá liga, o religare, do latim, e evidencia esse português tipicamente brasileiro filho de nativos e africanos e de um pai, muitas vezes, ausente. Descobrir o Brasil é redescobri-lo de ouvido. E redescobrir é desvelar os trânsitos do mundo e o Zé dá o tom e faz a trilha sonora da história da língua que toca sabores. Todos querem a terra sem mal dos Guaranis, mas poucos estão dispostos a pagar o preço de viver nela e abrir mão de alguma certeza.

A língua brasileira é a prova desse movimento sem fim entre um eu e um outro. Um eu que só existe no outro, e Rimbaud já disse "o eu é o outro" e o Zé cantou "Babel das línguas em pleno cio / Seduz a África, cede ao gentio / Substantivos, verbos, alfaias de ouro / Os seus olhares conquistam do mouro / Mares-algarismos / Onde um seu piloto / Rouba do ignoto / Almas e abismos...".

São muitos os brasis, os abismos e as vertigens. Brasil é Angola, é Cabo Verde, é Moçambique, é o Veneto e são todos esses antes de serem nominados assim, são os nativos tantos e os europeus e os orientais que para o Brasil foram pelo rapto, por medo ou por gosto. O Brasil é pessoa, em plural. E entender que é possível ser múltiplo, num mundo que preza por padrão engomado de viver é ameaça. A com-fusão brasileira mostra a potência de integrar o diferente e que a dialética hegeliana não acaba na síntese, ela se reinventa, afinal, Anitta rebola e Tom Zé cria.

* "melondioso" é uma brincadeira da autora com a palavra melodioso. Em várias regiões do Brasil pessoas falam cunzinhado, variação de cozinhar, mendingo, no lugar de mendigo, apenas pequenos exemplos da força das melodias dessa língua com-fusa.

Psicanalista e escritora, doutora em ciências humanas

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt