A colheita portuguesa de Cannes foi bonita

Histeria completa para Fábrica de Nada, de Pedro Pinho, uma odisseia portuguesa numa fábrica de Vila Franca de Xira. O filme foi aclamado na Quinzena dos Realizadores
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Aplausos de pé, comoção na plateia. Foi assim que Fábrica de Nada, de Pedro Pinho, foi recebido na sessão oficial da Quinzena dos Realizadores. Este épico de três horas, que antes chegou a ser projeto de Jorge Silva Melo, recebeu também críticas elogiosas na imprensa francesa e está já comprado para o mercado chinês e a gerar uma furiosa procura para outros festivais. Podemos então falar em triunfo de um filme que tinha tudo para não resultar: a sua longa duração, a tão estafada mistura de ficção com documentário e um suposto discurso crítico do estado do capitalismo em Portugal nos nossos dias. Mas este filme coletivo (feito também por Leonor Noivo, Tiago Hespanha, João Matos e Filipa Homem) da Terratreme é de uma inteligência transbordante. De repente, é também um musical subversivo. Ainda mais de repente, é um espelho da sociedade portuguesa feito com uma câmara que sabe respeitar rostos e interagir de forma milagrosa com atores profissionais e não atores. O tal novíssimo realismo português feito com uma invenção sempre espantosa, sempre a roçar o punk-rock (o operário protagonista é vocalista de um banda hard core). Cereja no topo do bolo: não remete para experiências do género que Miguel Gomes ou João Canijo já fizeram.

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A história inspira-se numa verdadeira fábrica dos arredores de Lisboa que sobreviveu em autogestão dos operários sem a administração. Ao mesmo tempo, vamos acompanhando o final de uma relação entre um dos operários e a sua companheira. Pelo meio, discute-se o lugar da esquerda na discussão do capitalismo e há também quem queira fazer um musical com os operários "para apresentar aos amigos intelectuais de França para verem os portugueses pobres", conforme alguém reclama a meio da narrativa...

Para Pedro Pinho, autor do já muito promissor Um Fim do Mundo, a ovação no final da sessão foi uma grande surpresa: "para ser sincero, naquele momento apeteceu enfiar-me num buraco! Foi incrível, muito bonito. Fiquei superemocionado!" O realizador contou ainda ao DN que o filme surgiu de uma parceria entre ele, Jorge Silva Melo e o coletivo Terratreme: "daí surgiu um conjunto de ideias-base. A partir disso, procurei apropriar-me do corpo do filme. Reescrevemos todo o argumento e procurámos adaptá-lo aos nossos interesses, à nossa forma de ver o mundo, às nossas inquietações e à nossa maneira de trabalhar com a realidade e com os atores."

Fábrica de Nada, que erradamente poderá ser recebido em Portugal como "filme comunista" (palavras do crítico do Libération), atinge um esplendor de gesto de cinema selvagem. Sabota-se, interroga-se e depois dá-nos uma poesia que sai do real, sobretudo das paisagens de Vila Franca de Xira, onde até encontramos avestruzes com cinegenia. Está aqui o objeto de cinema português mais relevante a nível de reflexão social em muitos anos. Não é por acaso que no fim nos deixa embalados com a voz de Zeca Afonso. O cineasta conta ainda que neste seu novo filme retoma algumas das obsessões anteriores: "Sobretudo na forma como algumas construções ideológicas se intrometem e condicionam de forma totalitária a intimidade das pessoas e o curso das suas vidas. Aqui, a ideia de trabalho e Europa estão muito presentes como instituições de denominação ideológica um bocadinho anacrónica." Não será arriscado prever que depois deste triunfo cannoise, Pinho ganhe um peso internacional interessante. Na apresentação do filme, o produtor João Matos alertou de viva voz para a situação "grave" que se vive na nova lei de financiamentos. Segundo ele, filmes como Fábrica de Nada e outros que funcionam nos festivais podem estar em risco num futuro próximo.

Outro dos triunfos portugueses em Cannes foi a nova curta de Carlos Conceição, o belo Coelho Mau, parte de uma sessão especial de curtas na Semana da Crítica. Conceição mostrou-se muito agradado com a receção do filme, aplaudido também de forma enérgica na sua sessão oficial. Coelho Mau é um conto gótico sobre dois jovens irmãos que vivem com a mãe numa casa de campo. A visita de um amante francês da mãe vai suscitar uma espécie de despertar sexual neste casal de irmãos. Conceição filma os seus atores, João Arrais e Júlia Palha, com uma volúpia e elegância consolada. Há muito que não tínhamos um cineasta a explodir com tanta sensualidade.

As curtas foram também destaque na Quinzena dos Realizadores, onde na seleção encontrámos Farpões Baldios, de Marta Mateus (conhecíamo-la como atriz de precisão fulgurante em Setembro, de Leonor Noivo), e Água Mole, de Laura Gonçalves e Alexandra Ramires (Xá). O primeiro é um olhar do real sobre as memórias alentejanas da reforma agrária, enquanto o segundo é a estreia de duas animadoras que através da técnica de gravura contam uma história sobre o interior de Portugal e a sua desertificação. "Este filme surgiu a partir de um conjunto de viagens que fomos fazendo no Interior de Portugal, onde recolhemos alguns registos sonoros. A curta pretende mostrar principalmente o lado de quem opta por ficar na sua terra nestas correntes migratórias."

Água Mole junta entrevistas reais e uma narrativa de ficção e é mais uma produção da Bando à Parte de Guimarães a fazer furor no circuito de festivais. No mercado passou ainda uma produção de Paulo Branco, Tous les Rêves du Monde, de Laurence Ferreira Barbosa, cineasta lusodescendente que filma aqui uma história de emigrantes portugueses. Um olhar honesto sobre os emigrantes portugueses filmado com o coração nas mãos. Uma espécie de anti-A Gaiola Dourada com valores melodramáticos notáveis.

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