A coleção de arte que Estaline quis destruir conquista os franceses
Reunida pela primeira vez quase um século depois do decreto de nacionalização de Lenine, de 29 de outubro de 1918, a coleção de arte do empresário russo Sergei Shchukin (1854-1936) é a grande responsável pelas filas de espera de quase duas horas que por estes dias se acumulam à porta da Fundação Louis Vuitton, em Paris, icónico edifício com traço do arquiteto norte-americano Frank Gehry, inaugurado em outubro de 2014.
Um sucesso que em números se traduz em mais de 600 mil visitantes nas dez primeiras semanas e num prolongamento da mostra por mais duas semanas (poderá ser vista até 5 de março em vez da primeira data anunciada de 20 de fevereiro), que se deve à junção de duas vontades: a do neto do colecionador, André-Marc Delocque-Fourcaud, e a do presidente da Fundação Louis Vuitton, Bernard Arnault.
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A grande curiosidade do público é plenamente justificada pela quantidade e qualidade das obras compradas em Paris pelo industrial do têxtil moscovita entre 1898 e 1914, uma "coleção de arte francesa do mais radical na época", segundo as palavras da comissária da exposição, Anne Baldassari, "que o colocou no epicentro da revolução das artes". É logo nas suas primeiras viagens de negócios à capital francesa, nos anos 1890, que Sergei Shchukin se interessa por arte, com a ajuda do galerista Paul Durand-Ruel. Os impressionistas foram os primeiros a chamar a sua atenção, especialmente Monet.
Mas Shchukin não se ficou por aí. Ao contrário da opinião dominante na primeira década do século XX, que apelidava as obras de artistas como Picasso, Matisse e Braque de "insuportáveis, monstruosas", comparadas mesmo "à peste negra" - como lembra Baldassari - o empresário russo compra muitas dessas obras "por vezes ainda frescas", chegando mesmo a fazer encomendas a alguns artistas.
"Se um quadro lhe provoca um choque psicológico, compre-o". O conselho é do próprio Sergei Shchukin e chega ao visitante através de uma instalação multimédia, criada por Peter Greenaway e Saskia Boddeke. Depois de conhecer o aspeto físico do colecionador através de dois quadros do pintor Christian Cornelius (Xan) Krohn colocados na primeira das catorze salas da exposição, vale a pena assistir à instalação para, em meia dúzia de minutos perceber a forma como este homem se relacionava com a arte do seu tempo.
E como a partilhou, ao contrário do seu amigo, o também empresário e colecionador de arte Ivan Morosov: a partir de 1908, todos os domingos, Shchukin abria as portas da sua residência, o Palácio Trubetskoi em Moscovo, ao público em geral, críticos e estudantes, "contribuindo assim para a formação das vanguardas artísticas russas", explica Anne Baldassari. "Malévitch, Rodchenko, Larionov ou Tatlin, entre outros, descobriram nas paredes do Palácio Trubetskoi os grandes conjuntos dos quadros de Monet, Cézanne, Gauguin, Matisse, Derain ou Picasso", refere.
Gigantes fotografias a preto e branco revestem algumas das paredes dos quatro pisos do edifício da Fundação trazendo um pouco do ambiente vivido no palácio por esses artistas russos que a comissária fez questão de incluir nesta exposição, através de 31 obras que são apresentadas em contraponto com quadros da coleção Shchukin em que se filiam.
Depois da Revolução Russa de 1917, ambas as coleções foram nacionalizadas e, após a nacionalização, por Lenine, em 1918, deram origem ao primeiro museu de arte moderna fundado no século XX, o Museu de Arte Moderna Ocidental, de Moscovo, criado em 1921, embora as coleções tenham sido mantidas nos locais originais, o Palácio Trubetskoi e o Hotel Morosov.
A partir de final dos anos 1920, e numa luta contra a "arte burguesa" que a coleção Shchukin representava, o conjunto de obras do empresário moscovita foi desvalorizado e, nos anos 1930, houve mesmo duas tentativas de venda no mercado internacional.
Em 1948, um novo decreto, agora de Estaline, levou à divisão da coleção entre os museus Pushkin, de Moscovo, e o Hermitage, em São Petersburgo, mas para serem colocados nas reservas, com "indicações precisas proibindo a sua exibição", sublinha Anne Baldassari. "Foi preciso esperar pela morte de Estaline e pela política de "degelo" do final dos anos 50 para, progressivamente se assistir à exumação das coleções russas de obras de arte francesas", contextualiza a comissária, que entre 2005 e 2014 liderou o Museu Picasso, em Paris.
Esta exposição, que conta com 127 das 274 obras da coleção Shchukin é mais um passo nessa direção, voltando a reunir alguns dos 29 Picasso, 22 Matisse, 12 Gauguin, 8 Cézanne e 8 Monet, vários Van Gogh, Georges Braques e Henri Rousseau novamente num mesmo espaço, depois da divisão em 1948. E o catálogo (50 euros), "documenta-a, pela primeira vez, como um conjunto", sublinha Anne Baldassari.
Em Paris