Manuel Cintra Ferreira, o mais antigo programador em actividade da Cinemateca Portuguesa (crítico do semanário Expresso), acaba de ter um singular gesto de amor pela casa em que trabalha: ofereceu, para a respectiva colecção, duas cópias de dois dos seus filmes de eleição. São eles The Searchers/A Desaparecida (1956), de John Ford, e The Thief of Bagdad/O Ladrão de Bagdad (1940), de Michael Powell, Ludwig Berger e Tim Whelan..Retribuindo o gesto, a Cinemateca apresenta as novas cópias num pequeno ciclo a que deu o nome sugestivo de "Presentes de Manuel Cintra Ferreira" (primeira sessão com o filme de Ford, 1 de Outubro, 19h00). Nele se darão a ver mais nove filmes que podem resumir a relação pessoal de Cintra com a história e a mitologia do cinema. Entre os eleitos, vale a pena destacar uma raridade de Budd Boetticher (The Bullfighter and the Lady/Homens na Arena, 1951) e um clássico de Totò (Guardie e Ladri/Policia e Ladrão, 1951)..Numa altura em que a especificidade da crítica de cinema se encontra tão menosprezada (na blogosfera, nascem críticos como cogumelos e o insulto impera como "prova de verdade"), vale a pena manifestar uma cumplicidade militante com a cinefilia de Cintra Ferreira. Não por mero gosto da homenagem. Nem apenas porque recordo com prazer os trabalhos em que colaborámos, nos anos 80, no Expresso. Muito menos por qualquer coincidência universal de visões, leituras ou interpretações: conhecemos bem esse preconceito estúpido que define "a crítica" como um bando de intelectuais que se rege por um discurso único e unívoco..Trata-se apenas de enaltecer a dimensão mais genuína dessa cinefilia: não a de "adorar" o cinema como uma colecção de efeitos especiais fabricados para produzir clips televisivos mais ou menos vistosos, mas sim de ver (e viver) os filmes como uma paisagem inerente à própria condição humana..Na mitologia pessoal do Cintra, um filme como A Desaparecida corresponde, creio eu, a uma espécie de cristalização mágica das componentes dessa paisagem. O seu humanismo afigura-se tanto mais importante quanto a ideologia televisiva trabalha todos os dias para que o desprezemos. Vivemos, aliás, num tempo em que se tenta discutir a questão da "identidade" através de filmes com personagens e situações que se reduzem a cromos televisivos (em sentido literal ou irónico)..O que encontramos no cinema de Ford, tal como em Boetticher ou Totò (Raoul Walsh ou Jacques Tourneur, para citarmos mais dois autores representados no ciclo), é essa intensidade única de algo que circula pelos corpos e pelas imagens, celebrando a pluralidade infinita do factor humano. Raízes de tudo isso? As mais prosaicas. Vale a pena lembrar o que John Ford disse quando, tentando indagar das suas motivações ideológicas, alguém lhe perguntou como chegara a Hollywood. Respondeu ele: "De comboio."