A chuva parou por Sinatra 

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A noite mágica de 1980, há exatamente 40 anos, em que 150 mil cariocas retribuíram o amor que ele inspirara com seus discos.

Serão 40 anos dentro de alguns dias - 27 de janeiro de 1980, um sábado. Foi a primeira vez que um megastar internacional precisou de um estádio de futebol para se apresentar no Brasil. E o estádio só poderia ser o Maracanã. Qual outro comportaria Frank Sinatra e as 150 mil pessoas que foram escutá-lo, amá-lo, idolatrá-lo?

A ideia já era antiga: se, um dia, Sinatra viesse cantar no Rio, teria de ser no Maracanã. Entendia-se que só o então maior estádio do mundo comportaria as várias gerações de brasileiros que, pelos 40 anos anteriores, haviam dançado, se beijado e se apaixonado, talvez até casado, ao som de seus discos. Na verdade, ninguém no século XX participou de mais triângulos amorosos do que Sinatra, formados pelos casais que se deixavam seduzir por seus discos. E essa sedução parecia ter-se transferido para seus filhos, porque, em 1980, Sinatra ainda tinha grandes plateias entre os jovens brasileiros.

E assim, desde o meio da tarde daquele dia, gente vinda de todas as partes do Brasil subiu a rampa do Maracanã, em direção às cadeiras no relvado ou às bancadas de cimento, na expectativa de ver Sinatra - e só acreditando que aquilo aconteceria no momento em que ele adentrasse o palco. Não que houvesse dúvida quanto à sua presença no Rio. Quatro dias antes, ele descera no aeroporto do Galeão sob as lentes de uma multidão de fotógrafos. Fora transportado de helicóptero sobre a baía de Guanabara e, ao chegar ao hotel em meio ao povo, em Copacabana, alguém afagara ilicitamente o rabo de Barbara, sua mulher, o que quase ia provocando uma crise internacional. Com tudo isso, não havia dúvida - Sinatra estava no Brasil.

Então, a poucas horas do concerto naquele sábado, começou a chover - uma chuva fina e persistente, que punha em perigo a realização do espetáculo a céu aberto. O povo não se deu por achado: já tomara completamente o estádio, sem saber que, por causa da chuva, não houvera passagem de som - os técnicos não podiam deixar que o equipamento se molhasse, nem os 20 violinistas aceitavam expor os seus Stradivarius -, e que, se a água não desse uma trégua até às 21.00, hora marcada para começar, não haveria o show.

Uma coisa era o Maracanã receber o Papa João Paulo II, promover a chegada anual do Pai Natal ou, como era comum, abrigar Fla-Flus para 150 mil pessoas. Outra era servir de palco para o cantor mais rigoroso do mundo. Sinatra exigia um minucioso e complexo projeto de som para que a sua voz, emoldurada pela orquestra de 40 figuras regida por Vinnie Falcone, chegasse ao mesmo tempo e com o mesmo volume, timbre e clareza em todos os pontos do estádio. Não esquecer que ele era um cantor de verdade, que queria ser ouvido - não um daqueles que compensam a falta de voz com rebolados, canhões de luz, jatos de fumaça e ensurdecedora pancadaria sonora. E, para completar, a cultura de espetáculos em grandes estádios ainda estava apenas começando. Mas a história provaria que Roberto Medina, responsável pela vinda de Sinatra ao Rio - anos depois, ele inventaria o Rock in Rio -, tinha uma estrela na testa.

Às 20.53, quando o concerto já parecia condenado, deu-se o milagre. A chuva parou. Na bancada, estendi a mão para me certificar de que fora o último pingo e olhei o relógio. Faltavam exatamente sete minutos para a hora marcada. Lá de cima, vi quando os técnicos correram e plantaram os microfones nos pedestais. Os músicos surgiram com seus instrumentos, Vinnie Falcone deu o start - e Frank Sinatra, de 64 anos, o maior cantor popular do século XX, saiu dos camarins que, um dia, tinham abrigado Garrincha, Pelé, Zico e tantos outros heróis. Avançou em largas passadas pelo estrado atapetado em direção ao palco hexagonal, em forma de estrela, armado bem em cima do grande círculo, e levou quase cinco minutos sendo ovacionado antes de poder começar a cantar.

Magrinho, ainda em grande forma e com a voz firme e redonda que lembrava a dos discos, Sinatra cantou I've Got the World on a String, I've Got You under My Skin, The Lady Is a Tramp, At Long Last Love, The Coffee Song, My Kind of Town, a brasileira Corcovado, a inevitável My Way, a novíssima New York, New York e muitas mais, num total de 20 canções. Durante uma hora e 15 minutos, atravessou correndo todas as pontas da estrela (havia um microfone em cada ponta), recolheu flores que lhe jogaram, abaixou-se para se deixar tocar pelas pessoas aos seus pés e atirou beijos para o céu. Num momento mais grave, pediu silêncio à orquestra e disse: "Este é o maior momento de minha vida profissional. Nunca - nunca -,em toda a minha carreira, tive uma plateia como esta." E esta plateia não lhe faltou: quando ele começou Strangers in the Night (canção pela qual não tinha simpatia) e esqueceu a letra, as 175 mil pessoas cantaram por ele - em inglês. E, de repente, outro imprevisto: um homem burlou a segurança, subiu ao palco, atracou-se a Sinatra e sapecou-lhe beijos na bochecha - até ser manietado pelos seguranças e levado a tapas para longe das vistas. Sim, era o português José Alves de Moura, o depois famoso Beijoqueiro, fazendo sua estreia mundial em beijar celebridades de visita ao Brasil. (Na hora, Sinatra se assustou, embora não tenha passado recibo. Anos depois, riria do episódio ao saber que, dali a meses, o Beijoqueiro conseguira beijar também o Papa.)

Às 22.15, ele se curvou pela última vez aos aplausos do estádio e desceu a longa passarela de volta aos camarins. O Maracanã nunca vira tanta gente chorando - de emoção. E, como se tivesse havido um acordo cósmico entre Sinatra e os altos poderes, assim que ele sumiu de vista - e só então -, a chuva voltou com toda a força.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros livros, Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova (Tinta-da-China).

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