A "Caveira com cigarro aceso" do século XIX que o século XXI redescobriu
George Gaylord Simpson, um dos mais influentes paleontólogos do século XX, sublinhava a impossibilidade de calcular o número de efetivos em populações de dinossauros há muito extintas. Em 2021, Charles Marshall, paleontólogo e evolucionista, diretor do Museu de Paleontologia da Universidade da Califórnia, revelou posição contrária à do seu conterrâneo. Em abril de 2021, Marshall esteve entre os investigadores que assinaram o artigo "Absolute abundance and preservation rate of Tyrannosaurus rex", na norte-americana revista Science. O trabalho apresentou uma estimativa de números colossais para uma das espécies de dinossauros carnívoros que pululava na América do Norte há 66 milhões de anos. Calculando que, a cada momento, a população de Tyrannosaurus rex (T.rex) rondava os 20 mil indivíduos adultos, persistindo por 127.000 gerações, Charles Marshall e a sua equipa apontavam que 2,5 mil milhões de T.rex habitaram a América do Norte, território onde a espécie era nativa. O estudo de Charles Marshall ressalvou, contudo, que as simulações de computador, dependendo das variáveis introduzidas, apontavam para números díspares, entre 140 milhões e 42 mil milhões.
Longe dos grandes números de Marshall e da Era Mesozóica, em outubro de 1993, o rugido de um único T.rex aterrorizou centenas de milhares de espectadores em salas portuguesas de cinema. Seis dezenas de milhões de anos volvidos sobre o reinado do "lagarto tirano" de 12 metros de comprimento e seis toneladas de peso, o mundo ressuscitou-o para o cinema. A década de 1990 enamorou-se dos dinossauros, convertidos em estrelas da cultura pop. Um vedetismo que contou com o contributo de uma película norte-americana realizada por Steven Spielberg, adaptada a partir do livro de 1990 do escritor americano Michael Crichton. Parque Jurássico inspirou-se na hipótese de manipulação genética do ADN de dinossauros, a partir de amostras recolhidas em insetos preservados em âmbar. Ressurgidos para a vida, cativos de um parque temático, num paraíso tropical, a Ilha Nublar, os dinossauros protagonizavam uma conturbada relação com os humanos, numa narrativa com alusões à Teoria do Caos e às suas implicações no mundo real ("uma borboleta bate as asas em Pequim e em Nova Iorque chove ou faz sol", assinalava o ator Jeff Goldblum à atriz Laura Dern).
Parque Jurássico, na sua versão em papel, inspirava-se no guião escrito em 1983 pelo próprio Michael Crichton. No enredo, um estudante de pós-graduação "ressuscitava" um dinossauro para o século XX. Volvidos sete anos, o autor de obras como A Esfera, O Homem Terminal e Sol Nascente, encontrou na inspiração do designer americano Charles Kidd (conhecido como Chip Kidd), o mote para fazer da capa de Parque Jurássico um sucesso livreiro, mas também cinematográfico e comercial. O perfil negro de um esqueleto T.rex sobre um fundo branco, serviu de inspiração ao marketing milionário da película.
No portefólio do design de capas de Charles Kidd reside um outro esqueleto que não careceu de uma "viagem" de milhões de anos para alcançar a notoriedade. Em 2008, Chip Kidd entregou nas mãos do escritor e humorista norte-americano David Sedaris, a proposta de capa para o seu livro de ensaios Diário de um Fumador (no original, When you are Engulfed in Flames). Na obra, publicada em Portugal em 2009, o autor exerce o seu humor autobiográfico e autodepreciativo em episódios como o estágio numa morgue, a viagem de táxi com um motorista obcecado por sexo fetichista ou o aniversário em que ofereceu um esqueleto verdadeiro. Para além da prosa singular, onde cabe a vida familiar e suburbana, a sua herança grega, os comportamentos obsessivos, a assunção da sua homossexualidade, o livro de Sedaris recuperou para o século XXI, o génio do século XIX. Numa viagem a Amesterdão, o escritor nascido em 1965, fascinou-se com uma pintura impressa num postal. De fácies escarninha, um esqueleto exibe um cigarro que queima entre os dentes. O fumador grotescamente cómico, pintado no inverno de 1886, empresta o seu olhar vazio à capa do sexto livro de David Sedaris. Caveira com cigarro aceso, pintura a óleo sobre tela, de modestas dimensões (32x24,5 cm), encontra-se em exposição permanente no Museu Van Gogh, em Amesterdão. A obra sem as pinceladas rodopiantes de cores em contraste que reconhecemos mais tarde no mestre holandês, nascido nos Países Baixos em 1853, remonta à juventude do pintor, quando estudava em Antuérpia, Bélgica, na Academia de Belas-Artes.
Na época, o artista começara a fumar, praticava uma alimentação precária, enfrentava problemas de saúde, crescente ansiedade no que concernia à sua aparência. Na escola de belas-artes praticava o estudo de modelos de gesso e esqueletos para compreender a anatomia humana. Sobre a inspiração para Caveira com cigarro aceso, pendem as mais diversas teorias: uma crítica ao tabagismo (pouco provável); um autorretrato do autor ou um projeto formal em sala de aula; um memento mori, símbolo da inevitabilidade da morte; uma reação ao ensino conservador da academia onde estudava; uma inspiração a partir do trabalho do pintor holandês do século XVII, Hercules Segers (autor de Uma Caveira) e do belga Félicien Rops (e as suas ilustrações com esqueletos da obra Os Naufrágios, de Charles Baudelaire). Van Gogh entrou em conflito com a instituição e professores que viam no seu traço uma expressão grosseira de talento. Ao fim de poucas semanas abandonou a instituição.
Caveira com cigarro aceso permaneceria nas mãos do irmão de Van Gogh, Theodorus (Theo), mais tarde aos cuidados da viúva deste, Johanna van Gogh-Bonger e até à data da sua morte, em 1925. Em 1962, após mais de três décadas à guarda de Vincent Willem van Gogh, filho de Theo e Johanna, a obra de arte foi adquirida pela Fundação Van Gogh. Finalmente, em 1973, celebrado um acordo de empréstimo entre a Fundação e o Estado dos Países Paixos, Caveira com cigarro aceso mereceu exposição museológica. Desde 1994, a pintura reside no Museu Van Gogh que, a propósito da caveira fumadora escreve de forma lapidar: "é uma piada juvenil. A pintura revela que o autor tinha um bom domínio da anatomia. Desenhar esqueletos era um exercício corrente na academia, mas pintá-los não fazia parte do currículo. Ele [Van Gogh] deverá ter produzido a pintura numa outra ocasião, antes ou depois das suas aulas".
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