A casa onde se dá vida aos dias de dezenas de crianças

Chama-se Kastelo, é a única unidade de cuidados continuados pediátricos do País. Nasceu por iniciativa da associação "NoMeioDoNada", para dar resposta a famílias que lidavam com o desespero de não ter onde deixar os filhos. Pode ser vista como uma "unidade de saúde em miniatura", mas onde as crianças só vão à cama dormir, já que a missão é preencher os dias de quem está doente
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"Bem-vindo a este reino encantado." Aqui vivem príncipes e princesas com doenças graves, crónicas, por vezes em fase terminal. É deles o Kastelo, uma luminosa casa senhorial disfarçada entre os edifícios da Rua Godinho Faria, em São Mamede de Infesta, Matosinhos. Uma casa onde se "dá vida aos dias", já que não é possível dar dias à vida. É esta a filosofia, diz Teresa Fraga, enfermeira e presidente da associação NoMeioDoNada, que fundou aquela que é a primeira e única casa de cuidados continuados e paliativos pediátricos do país. Ao DN, o Ministério da Saúde diz que foi elaborada uma proposta de alteração legislativa que permitirá estender este tipo resposta ao resto do país, em que se estima que haja cerca de seis mil crianças a necessitar de cuidados continuados.

Quando atravessou pela primeira vez os portões do Kastelo, Isabel Bandeira, de 49 anos, sentiu que "ia começar a viver". Ela e o filho, Afonso, de 7 anos, que sofre de citopatologia mitocondrial, uma doença que "afeta o sistema nervoso central, a parte muscular e cerebral". A mesma doença que provocou a morte ao filho mais velho: "Disseram-me que a natureza não se enganava duas vezes."

Uma crise no infantário levou Afonso até ao hospital, onde foi referenciado para o Kastelo. Ficou 70 dias em regime de internamento e encontra-se agora em ambulatório. "Tem evoluído de dia para dia." Além de cuidados como fisioterapia e terapia da fala, Afonso recebe "muito amor e carinho". "Aquele é o meu mundo encantado", sublinha Isabel.

Afonso é uma das 20 crianças integradas atualmente no Kastelo: dez em regime de internamento, dez em ambulatório. Desde junho de 2016, quando foi inaugurada, a casa já apoiou 68 bebés e crianças com todo o tipo de patologias crónicas. "Doenças musculares, paralisias cerebrais, doenças metabólicas, traumatismos cranioencefálicos, epilepsias, doenças oncológicas, doenças raras", exemplifica Teresa Fraga, destacando que recebem crianças "de Beja a Mirandela" na unidade, que neste ano integrou a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados.

A cama é só para dormir

Se o Kastelo não existisse, as dezenas de crianças que por ele passam estariam "fechadas em casa ou no hospital" durante meses ou anos. Mas aqui não há crianças acamadas. "Fazem uma vida o mais semelhante à vida no exterior. Somos uma unidade de saúde em miniatura mas com uma filosofia diferente: dar vida aos dias", explica a especialista em cuidados continuados infantis.

Às dez horas não encontramos ninguém nos quartos. Na sala de atividades, A., de 4 anos, faz "camas para os bonecos" com a ajuda da irmã de um dos utentes. Nasceu com múltiplas malformações físicas que o impedem de estar num infantário. Brinca numa sala onde as luzes dão cor às paredes, indiferente à presença de estranhos. Num ambiente mágico onde está também G., de 15 anos, que sofre de paralisia cerebral. "Veio para descanso do cuidador, pela terceira vez", adianta Teresa Fraga.

As crianças vêm geralmente "para reabilitação ou descanso do cuidador. Era suposto ficarem no máximo 90 dias, mas há muitas que ficam mais porque não há onde as colocar". Na unidade dispõem de fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, psicologia, educação especial, assistência social, pediatria e até de um professor.

Este Kastelo oferece, no entanto, muito mais do que um conjunto de valências de reabilitação. Dá uma atenção especial a cada criança. "Nunca estão sozinhas." Nem podem estar. "Estão sempre à beira do abismo." A maioria não fala, mas muitas comunicam através de sinais. "Percebem tudo. Temos de nos dirigir a elas, entrar nelas", diz Teresa Fraga. Essa comunicação é feita através da expressão facial, do olhar.

Estimulação sensorial

No chão da sala de atividades, Eunice Rocha, de 34 anos, faz exercícios de ioga a um menino de 4, que é apoiado pelo Kastelo desde 2016, quando entrou devido a um traumatismo cranioencefálico. Chamemos-lhe João. "Tem muita tensão no corpo. Com estes exercícios não só relaxa como são estimulados os órgãos internos. Por vezes fica tão relaxado que adormece", conta a educadora de ensino especial.

João não fala, "mas percebe tudo. Quer muito mimo", afirma Teresa Fraga. "É o Euromilhões do Kastelo. Quando chegou aqui não via, não reagia. Evoluiu muito." Conquista todos os que por aqui passam. "Já tinha transitado para o regime de ambulatório, mas há um padrinho do coração que patrocina o internamento." Alguém que visitou o Kastelo conheceu João e quis proporcionar-lhe mais cuidados. "Precisamos de mais padrinhos."

Na mesma sala está Paulinho, de 4 meses. Teresa rouba-lhe um sorriso. Logo a seguir outro. Como diz Mariana Carvalho, enfermeira de 27 anos, "aqui cada sorriso é especial, é uma conquista". Paulinho é o "benjamim do Kastelo", conta a mãe, Sofia Domingues, de 28 anos. No dia em que fazia um mês "teve síndrome de morte súbita". Esteve quase 30 minutos sem respirar. Foi reanimado sete vezes. Resultado: várias lesões cerebrais.

Sofia dorme em casa mas vai todas as tardes à instituição, onde fica até à noite para participar nos cuidados ao bebé. "Este é um reino encantado, onde todos intervêm em prol da criança. O Paulinho teve uma evolução enorme. É o verdadeiro milagre", diz. Apoio e integração são palavras-chave no Kastelo. "Mas também há carinhoterapia. Os pais chegam aqui devastados, mas depois sentem que nunca mais vão estar sozinhos."

Teresa Fraga destaca que um dos objetivos "é que os meninos tenham uma vida o mais familiar possível", daí que os pais circulem livremente pela casa. Cada quarto tem acesso pelo interior, mas também pelo jardim, para que possam ter privacidade nos momentos mais difíceis. E existem três camas em que podem pernoitar. "A família é parte integrante do processo. Muitas ficam desestruturadas porque a doença acarreta muito conflito." No enorme jardim que rodeia o Kastelo há ovelhas, porquinhos-da-índia, coelhos. E até uma pequena horta. "São crianças fustigadas pela medicação. Esta é uma maneira de ajudar, para que a alimentação seja saudável", diz Sónia Pinto, voluntária. Já existe um parque infantil adaptado - baloiços para cadeira de rodas, por exemplo -, mas Teresa Fraga não quer ficar por aí. Prepara-se para organizar um jantar solidário para a construção de "um parque aquático" para estas crianças. Espaço já têm. "Precisamos de cem mil euros."

Uma unidade para seis mil crianças

É estimado que existam seis mil crianças a necessitar de cuidados continuados no país, mas esta é, por agora, a única unidade disponível. Ao DN, o Ministério da Saúde diz que a sua implementação foi seguida por uma comissão e que desse acompanhamento "resultaram diversas orientações para que a experiência tivesse sucesso, bem como a produção de um relatório final com recomendações para a ampliação da oferta ao resto do país". Foi com base nessas orientações que se procedeu "à elaboração de uma proposta de alteração legislativa que permita a expansão desta resposta a todo o país". Está em fase de "apreciação final".

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