A Casa de Papel de Isabel

Angola é por estes dias palco de uma revolução mais ou menos tranquila, porque tinha sido anunciada, desde que João Lourenço chegara ao poder e demonstrara, ao contrário do que por cá se dizia, que queria traçar o caminho da governação pelo seu próprio pé.
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Tudo o que já deu várias teorias sociais de justiça é o que está a passar-se em Angola com o volte-face em relação a Isabel dos Santos, a filha sem imunidade do ex-presidente José Eduardo dos Santos, apanhada numa fuga de informação gigantesca sobre os seus negócios. Mas Angola é também um laboratório social a céu aberto, o que o escritor José Eduardo Agualusa, acabado de aterrar em Luanda, encontrou e analisa numa entrevista no DN.

"O medo mudou de lado", diz ele. "Porque quem vive com medo, hoje - nestes dias muito mais -, são aquelas pessoas que participaram desse processo de corrupção. E isso é muito importante. É a partir daqui que se pode criar uma sociedade livre de corrupção. Em primeiro lugar é preciso que seja mais difícil ser corrupto, ou seja, que seja mais difícil ser corrupto do que ser contra a corrupção."

Nem sempre o medo é bom conselheiro, mas é muito com ele que contam as comunidades para se controlarem, para se manterem vivas. A base do sistema de controlo do crime é o castigo, e o medo dele. A vigilância visa a punição de quem sai das linhas.

As coisas ao contrário era como elas estavam - e fizeram o mal que se conhece à sociedade angolana. Quem já viu os olhos de um menino com fome nas estradas do interior angolano sabe bem a dimensão desse mal. E se muitos "sabiam"... vale a pena determo-nos um pouco neste "sabiam", que tem sido muito debatido por estes dias.

Não há lugares no panteão da história para os revolucionários que agora se revelam, apontando dedos que não querem que se voltem contra eles próprios. Mas é preciso dizer que nem todos têm, nem tinham, as mesmas responsabilidades, e nem todos têm, ou tinham, a mesma sabedoria, para dar um exemplo, do grau de diferentes gravidades das situações.

Depois há a questão do poder. Entre saber, falar e conseguir agir, há uma gradação importante. Não desculpa, mas atenua penas. Agualusa também questiona, nesta entrevista, o que não se fez, e como a "teia de cumplicidades" permitiu que nem em Angola nem em Portugal houvesse um movimento que levasse a mudanças antecipadas - em parte pelas mesmas razões, mais uma vez em diferentes graus: sociedades civis fracas e pobres, dependência de dinheiro externo, hábitos arreigados e fragilidade da comunicação social.

O que não aconteceu nas ruas acabou por dar-se, ironicamente, através dos gabinetes - até porque ninguém duvida de que tenha sido de algum gabinete (privado ou público) que surgiram os milhares de documentos que acabaram nas mãos do ICIJ.

O processo de denúncia, como aconteceu, com documentos a chegarem às mãos de um grupo de jornalistas internacionais organizados num consórcio, tem vantagens e desvantagens: a união das fontes faz a força da denúncia, claro, mas retira ao jornalista o frisson da busca da informação. Muito há a analisar nesta nova e cada vez mais forte relação entre jornalista e denunciante, sobretudo no possível enviesamento de informações e no não questionar do interesse do que é divulgado.

Mas tudo isso são assuntos para outros calendários. Porque nada do que possa apontar-se a este caso anula o enorme salto em frente que é a descoberta desta teia de corrupção que, por ser muito simples, mais uma vez como diz Agualusa, expõe todas as fragilidades dos nossos sistemas - políticos, económicos, mediáticos - que permitem crimes desde que abafados pelo dinheiro de quem os faz. Não está em causa um país, uma pessoa, uma classe. Está em causa um sistema inteiro, e à escala mundial. E não há nada que verdadeiramente nos impeça de mudar.

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