A campanha surrealista contra Saramago
O escritor Manuel da Silva Ramos avisa que não gosta de bater em mortos. E o caso não foi, nem é, pessoal: no início de 1998, um dos temas da agenda mediática da literatura era que José Saramago estava perto de ganhar o Prémio Nobel. Pegando numa velha bandeira dos surrealistas, os ataques estéticos, Silva Ramos aproveitou o lançamento do suplemento literário & Piimba! pelo Jornal do Fundão para escrever, com um grupo de surrealistas, um folhetim zombeteiro intitulado «A caminho do Nobel». Os surrealistas foram apanhados na própria ironia: o quinto capítulo, da autoria de Alface (pseudónimo do escritor e jornalista João Alfacinha da Silva, falecido em 2007), já não foi publicado em Dezembro, como previsto, porque Estocolmo anunciou, sem brincadeiras, que Saramago tinha mesmo ganho o Nobel.
O surgimento do suplemento literário não era propriamente uma inovação no histórico jornal das Beiras fundado por António Paulouro, que foi activista do salazarismo e uma das suas grandes dores de cabeça (o jornal esteve suspenso durante o Estado Novo). Isso explicava-se de chofre logo no número 1, de Janeiro de 1998: «É o & Piimba!, que não faz mais do que prosseguir uma tradicional linha cultural do Jornal do Fundão, lembre-se o & ETC., de grande qualidade artística e gráfica… Para dar pancada, elogiar, tirar do esquecimento (…).»
Ora, «dar pancada», ou atacar, era um expediente do surrealismo, lembra Manuel da Silva Ramos. «Só cá é que não se valorizam estas questões, mas em França, por exemplo, eram célebres os ataques estéticos dos surrealistas», conta o escritor, que criou e dirigiu o suplemento depois de chegar de França, onde esteve exilado «política e socialmente» 27 anos.
E, para que isso fique claro, Manuel da Silva Ramos dita um depoimento sobre José Saramago, que morreu no passado dia 19. «José Saramago não era da minha família literária, mas como escritor marcou sem dúvida nenhuma a literatura portuguesa do século XX. Como toda a gente sabe, o meu gosto vai mais para os surrealistas, os situacionistas, os contorcionistas de todo o terreno, os obscuros e os malditos que morreram na sombra, desconhecidos e puros. Alguns até foram amaldiçoados…»
Fica claro, portanto, que era apenas uma questão estética, curiosamente num jornal que tinha publicado inúmeras crónicas de Saramago nos anos 1970 (muitas delas entraram nas colectâneas Bagagem de Viajante).
«Este suplemento faz parte da história da literatura portuguesa», arrisca Manuel da Silva Ramos, nascido em 1947, na Covilhã, e que muito novo fez nome literário com o Prémio de Novelística Almeida Garrett, em 1968, por Os Três Seios de Novélia (recentemente reeditado pela D. Quixote). Arrisca, mas não muito: afinal, a seu lado alinharam Alberto Pimenta, Adília Lopes e Alface, além do jornalista Álvaro Martins Lopes. Cada um deles escreveu um capítulo daquilo que ficou firmado, num selo bem visível na primeira página do mensal & Piimba!, como a campanha «A caminho do Nobel». Foi premonitório, portanto.
Escárnio
Entre Janeiro e Dezembro de 1998 falou-se de Saramago e do Nobel, mais a sério na imprensa, com escárnio no suplemento de Manuel da Silva Ramos, que ainda mantém frescas essas memórias. «Lembro-me bem do capítulo escrito pelo Alberto Pimenta. Era um texto magnífico, à volta de uma retrete no restaurante Galeto, na Avenida da República, em Lisboa», puxa o beirão. Era a voz do surrealismo. Alberto Pimenta foi o autor do segundo capítulo.
O terceiro foi assinado por Álvaro Martins Lopes, que continuou as desventuras do guarda Aniceto, personagem principal da trama surrealista. «Ele conhecia muito bem a obra do Saramago, por causa dos trabalhos que fez no Expresso, e conseguiu escrever um texto a imitar na perfeição o estilo de Saramago.»
Finalmente, o último capítulo publicado, da poetisa Adília Lopes, saiu do prelo em Junho de 1998. Pela mão da também cronista e tradutora, o guarda Aniceto passeia-se pelo Campo Santana, na capital. Seguia assim a campanha sarcástica contra José Saramago.
O quinto capítulo estava escrito e nas mãos de Manuel da Silva Ramos, editor do & Piimba! «Era um texto muito bom do Alface», diz sobre o companheiro de muitas aventuras – escreveram a quatro mãos Os Lusíadas (1977), As Noites Brancas do Papa Negro (1982) e Beijinhos (1996), todos publicados apenas em 1997. «Literariamente, estava muito trabalhado. Ainda o tenho comigo, no meio dos meus papéis», diz.
Era para sair em Dezembro, mas então já a Academia tinha anunciado José Saramago como vencedor do Nobel, sem sarcasmos ou ironias. O & Piimba! fecha na gaveta o capítulo de Alface e mantém a compostura: «Viva a Vitória!», titulava o suplemento na primeira página. «Graças ao denodado esforço do & Piimba! José Saramago obteve o Nobel. A Academia Sueca foi peremptória. Disse: José Saramago que com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia, torna constantemente compreensível uma realidade fugidia», desembaraçava-se o suplemento, reclamando com ironia um impacte (sur)real da campanha «A caminho do Nobel» na decisão da Academia Sueca.
«A verdade é que nunca ouvi uma palavra ao Saramago sobre isto. Nem por ele, nem por intermédio de ninguém. Fiquei sem saber o que é que realmente achou daquilo», rematou Manuel da Silva Ramos.