"A câmara de Kieslowski funcionava como um microscópio"

A trajetória da francesa Irène Jacob ficou para sempre marcada pelo seu trabalho com o polaco Krzysztof Kieslowski, em <em>A Dupla Vida de Véronique</em> e <em>Vermelho</em>. No momento em que os quatro filmes finais do cineasta regressam às salas portuguesas, a atriz fala de um olhar sobre o mundo que gostava de "deixar ao espetador a tarefa de completar as frases"
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Como é que a herança dos filmes de Krzystzof Kieslowski (1941-1996) persiste na memória de Irène Jacob? Ou ainda, em termos práticos: como entrevistar a atriz através das vantagens e limitações do correio eletrónico? Embora correndo o risco de ser acusado de patética presunção, atrevo-me a pedir ao leitor que encare as linhas que se seguem como uma variação jornalística sobre as marcas do imponderável (humano ou divino) no universo do cineasta polaco - até porque Irène Jacob o nomeia como "K".

Se é verdade que Kieslowski foi também um delicado retratista dos enigmas do feminino, eis o que podemos avaliar através dos seus quatro títulos finais (agora repostos em novas cópias): A Dupla Vida de Véronique (1991) e a célebre "Trilogia das Cores", formada por Azul (1993), Branco (1994) e Vermelho (1994) - Irène Jacob protagoniza o primeiro e o último.

No primeiro filme, tratava-se de representar duas personagens - Weronica e Véronique, uma na Polónia, outra em França - ligadas por algo de tão forte que parece provir do domínio do sagrado: "O desejo de K era filmar as coisas normalmente invisíveis num ecrã: a sensação de, por vezes, se estar acompanhado na solidão."

"K era alguém muito atento às coincidências, por vezes de maneira muito lúdica - era um grande observador e a sua câmara funcionava como um microscópio." Ainda assim, sublinha a atriz, tal atitude não decorria de uma lógica abstrata.

Era mesmo algo indissociável de todo um contexto histórico: "Tendo trabalhado na Polónia com uma censura muito severa, habituou-se, tal como os seus colegas cineastas, a fazer filmes em que, como ele dizia, se deixa ao espetador a tarefa de completar as frases..."

Daí, talvez, a contagiante sensação de liberdade que emana das histórias de Kieslowski, a ponto de podermos supor que grande parte do que vemos terá resultado de alguma forma de improvisação. Mas não: "Não havia qualquer improvisação no momento de filmar. K incentivou-me mesmo a criar um dicionário de gestos para Weronica e Véronique, começando por refletir nos gestos que fazia quando estava sozinha."

Tal rigor ("seguíamos o argumento à letra") não impedia que cada filme fosse concebido como uma estrutura em aberto, nomeadamente no domínio da montagem. A Dupla Vida de Véronique teve mesmo "umas quinze versões" a ponto de o realizador "ter imaginado três finais diferentes que seriam apresentados em diferentes salas de cinema."

Jogo de intimidades

Centrado na relação inesperada entre uma jovem modelo, de nome Valentine, e um juiz retirado, interpretado por Jean-Louis Trintignant, Vermelho é um conto moral sobre a Fraternidade (depois da Liberdade e Igualdade, respetivamente em Azul e Branco): "O tema é tratado através de dois seres que, a priori, não têm nada em comum. Para K, a relação entre o juiz e Valentine decorre do confronto que ele sentia em si mesmo entre a desilusão resultante da experiência e o otimismo da juventude."

Nesse jogo de intimidades, o cineasta envolvia-se como o mais omnipresente, ainda que mais invisível, dos atores: "K ajoelhava-se mesmo por baixo da câmara, que estava a dois passos de nós - quase fazia parte da imagem. No princípio, Jean-Louis sentia-se muito impressionado com isso. Durante a filmagem fazia-nos sinais, mais lento, uma hesitação, uma tensão, como um maestro - por vezes, tocava-nos num joelho." Para que o resultado fosse mais claro para o espetador? Talvez. Em todo o caso, não esquecendo um princípio muito direto: "Se começar a ficar demasiado explícito, eu corto!"

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