O telefonema chegou durante a tarde. A partida seria nessa noite. Começava assim, com uma primeira paragem em Madrid, a viagem da missão Paz em Timor. O massacre de Santa Cruz tinha sucedido há quatro meses e tornava-se imperativo que a questão de Timor-Leste não continuasse esquecida..Um grupo de estudantes portugueses e de outras nacionalidades (mais um grupo de jornalistas portugueses e estrangeiros, sem esquecer a tripulação) vai encarregar-se disso. A parte decisiva da viagem - o trajeto marítimo entre Darwin e o que se esperava que fosse o porto de Díli - foi vivida a bordo numa atmosfera de enorme calma. O ambiente nunca deixou de ser tranquilo. Nem no momento crítico em que o Lusitânia Expresso foi intercetado pelos navios de guerra indonésios houve perturbação entre as mais de cem pessoas a bordo. Em conversas posteriores, ficou claro que muitos percebiam claramente o que tinha estado em jogo e, tão ou mais importante de que essa perceção da realidade, estavam disponíveis para arriscar um pouco mais..Mas não era de risco que se tratava. O fundamental era deixar uma marca - que ficou. Sete anos mais tarde, o referendo sobre a independência assinalava o início de um novo ciclo para a parte leste da ilha de Timor. De algum modo, um ciclo que teve na viagem do Lusitânia Expresso uma espécie de etapa proto-histórica. E deixou uma memória e exemplo únicos. A memória começa a diluir-se; o exemplo, penso, ficará..A partida do porto de Darwin foi acompanhada por danças e sons de um grupo de aborígenes enquanto elementos da comunidade timorense local acenavam..A atmosfera a bordo era semelhante à de um vasto grupo que tivesse ido acampar - dormia-se sentado nos pequenos sofás do salão ou no chão; conversava-se noite fora sob um céu sem nuvens, tomava-se banho de mangueira no convés da embarcação e, para os jornalistas, preparavam-se os textos a enviar quando fosse possível o acesso ao telefone-satélite..Um detalhe que diz tudo sobre as pessoas que seguiam a bordo (entre elas, o então ex--presidente Ramalho Eanes). A grande maioria podia não ter mais do que um conhecimento difuso sobre Timor-Leste, não conhecer a sociedade e a cultura da ilha, a guerra de Manufahi ou a figura do régulo Aleixo Corte-Real, a poesia de Ruy Cinatti ou a lição que ainda hoje se aprende ao ler o seu Arquitetura Timorense; podiam não entender a diferença entre liurais e datós, designar pelo nome os múltiplos dialetos da ilha, entender o significado dos pactos de sangue ou ter conhecimento de episódios como a rebelião de Viqueque ou o do Vi Carda; não obstante, alheios a tudo isto, enquanto o Lusitânia Expresso avançava sobre águas transparentes, às vezes acompanhado por peixes-voadores, golfinhos ou tartarugas, pode dizer-se que o ferry avançava movido pela solidariedade daqueles que seguiam a bordo, conscientes da importância de não ficar esquecido um povo vítima da lógica da Guerra Fria.