A bordo das carreiras mais perigosas

Furtos e roubos, sobretudo de telemóveis, atos de vandalismo, brigas entre gangs. São os principais problemas da rede da madrugada da Carris. Demasiado cheios em algumas carreiras ao fim de semana, protestam os passageiros. Mais de 1,3 milhões em 2015. E são poucos os que pagam bilhete, cerca de 20%
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04.30, Cais do Sodré. O autocarro sai cheio da primeira paragem e já está a abarrotar de jovens no Martins Moniz. "Sai ou não sai", reclama o motorista na zona de Chelas quando uns impedem outros de sair. "Airport! Airport!", alerta no seu melhor inglês ao chegar ao aeroporto de Lisboa. Três ou quatro pegam nas mochilas e saltam para a rua. "Se não tivesse avisado ficavam cá. Já sei o que a casa gasta", comenta Aires, o condutor. Uns "à partes", não reprimendas. "Ando cá todos os dias, tem que se saber levar." Viajamos no autocarro 208 da carreira da madrugada da Carris, considerada a mais perigosa de Lisboa. Registos de furtos, brigas, vandalismo. O último a sair toca a campainha na Gare Oriente. Poucos pagam bilhete.

Seguimos viagem na cabine de proteção do motorista a conselho de Carlos Costa, 44 anos, o condutor do autocarro 202 [cais do Sodré-Bairro Padre Cruz]. "A 208 é uma linha muito complicada, confusões, roubos. E, quando paramos o autocarro, eles fogem. Têm de ter cuidado", alerta.

A 202 também não é muito melhor, sobretudo ao fim de semana. Mas há exceções, por exemplo a viagem que o DN acompanhou, com partida às 02.30 de sábado. "Foi completamente calma, o que é raro. Havia uns grupos lá atrás a fumar charros, mas o que é que vou fazer? Chamo a polícia? Põem todos na rua e depois? A polícia vem cá uma vez. Eu e eles estamos cá todos os dias", justifica Carlos Costa. E pergunta? "Em que parte do autocarro vieram?". Perante a resposta "lá atrás", repreende: "Isso nunca se faz!" E aconselha: "Viajar à frente, não andar com o telemóvel e valores à vista, evitar os fins de semana, sempre que possível".

"As carreiras mais problemáticas são a 202 e a 208, verificando-se a maior prevalência de incidentes no final do período de funcionamento da rede da madrugada, pelas quatro/cinco horas", esclarecem do gabinete de comunicação da empresa Transportes de Lisboa (Carris, Metro e Transtejo). E assumem: "Efetivamente, ocorrem com regularidade, incidentes (atos de vandalismo, distúrbios e agressões entre passageiros)". Elogiam o apoio da PSP que, desde 11 de janeiro, "incrementou a abordagem aos veículos, em especial no período noturno". Comentário de um motorista: "Olhe, está a dar-me uma novidade".

Alternativa barata ao táxi

"Problemas? Tirando o facto de estar super-cheio e mal frequentado, faz-se bem", ironiza Diogo Comprido, 28 anos, agente comercial, à espera do 208. Já viu muita coisa. "Fumam, falam mal, andam à bulha, além de que metade não deve pagar bilhete".

Não é metade, mas 80%, dizem os motoristas. António Aires vendeu 15 bilhetes entre as 23.30 e as 05.30 e Carlos Costa cinco das 00.18 às 04.00. "E pouco mais devo vender", prevê Carlos. A Carris lê os números ao contrário. "Embora não disponhamos de dados sobre o perfil do cliente, sabemos que mais de 80 % utilizam passe".

Diogo conta um episódio: "O autocarro parou na Praça do Comércio para fiscalizar quem não tinha bilhete. Estava cheio e ficou menos de metade. Saíram todos e voltaram a entrar na paragem seguinte, sem pagar." É o que acontece quando passa a fiscalização, uma vez por mês, em média.

Mora na zona dos Anjos e a rede da madrugada é a alternativa. "Muitos vezes vou sozinho e não compensa apanhar um táxi", justifica Diogo Comprido. Explica que viaja com algum cuidado. "É um ambiente complicado". Autocarros maiores e mais horários melhoravam o serviço, defende. Viaja junto ao condutor, com os estudantes Diogo Gaspar, 23 anos, Sociologia, e a Maria Vieira, 23, Engenharia Civil. Descem na Almirante Reis.

António Aires guia em direção ao Areeiro, a 70 Km à hora, as viaturas movidas a gás natural não dão mais. Há quem o cumprimente, quem peça para se aproximar mais do autocarro da frente para o poder apanhar. Outras vezes é ele quem tenta sincronizar a sua carreira com as outras, cinco minutos podem significar outros 60 de espera.

Leva uma hora a completar o percurso entre o Cais do Sodré e a Gare Oriente nas noites de fim de semana. E, apesar de trabalhar na linha mais perigosa da rede, gosta muito do que faz. "Gostamos ou então este é o pior trabalho que se pode dar a um motorista". Acrescenta: "Quando as coisas são feitas com amor praticamente não custam". Além de que "há noites que têm luas espetaculares". E não encontra engarrafamentos.

Instalou sistemas de climatização e trabalhou num laboratório de medicina veterinária antes de ser motorista da Carris, há 18 anos. Pouco tempo depois criaram a rede da madrugada. "Enquanto durar não vou sair", assegura. Como também assegura que não são os 25% que recebe a mais pelo turno da noite - das 23.20 às 06.50 - que o motivam. Também conduz o 207 (Fetais) e o 210 (Pior Velho).

E os roubos, os atos de vandalismo, as brigas da carreira 208? "É das carreiras mais complicadas, mas isso também depende do motorista. Se tivesse sempre a acionar o alarme não havia viagem em que não tivessem que ir à esquadra. Tem que se saber levar as coisas. Tenho uma certa paciência para esta malta." O alarme funciona através de um pedal do lado esquerdo do condutor. Está ligado à PSP e os agentes aparecem quando é acionado. "Muito rápido", garante Aires.

Além do alarme, os autocarros da rede estão equipados com videovigilância e uma divisória de proteção do motorista. Isola o condutor e permite que saia por corredor direto em caso de emergência.

A rede da Madrugada foi criada em 1998 para servir os visitantes da Expo. Seis linhas que convergem no centro da diversão noturna e abrem alas em direção às saídas de Lisboa. Os primeiros autocarros partem às 00.30, os restantes de 30 em 30 minutos e, a partir das 01.30, passa a uma hora de intervalo, para voltar à meia depois das 05.00.

Ficam mais cheias depois do metro fechar, à 01.00, e lotadas à medida que a noite avança. O Cais de Sodré, todo entaipado em obras, enche-se de jovens, muitos ainda com um copo na mão. E em que o tempo de espera na fila é mais um pretexto para encetar conversas, também brincadeiras. Com a polícia a viajar de perto.

Mais lento é o 202 . Segue pela rua do Alecrim, até ao Rato, passa pelas Amoreiras, sempre a recolher passageiros. Continua por Campolide, Sete-Rios, Benfica, Pontinha, Estrada Militar, na fronteira com a Amadora, até estacionar no Bairro Padre Cruz, no largo da Igreja.

"Apanho o 202 todas as noites, chega atrasado, o que é pena, mas funciona bem. Ao fim de semana é que é mais complicado, o pessoal faz coisas que não devia", reconhece Freddy Simon. Tem 24 anos e trabalha numa empresa de cal center até à meia-noite. Certinha é a noite no Cais do Sodré.

"Tenho que apanhar de autocarro. Moro em Alfornelos, não dá para pagar o táxi", diz o Freddy. Faz o percurso com Ana Gommel, 23 anos, mestrado em Recursos Humanos. "Tenho passe e é a única maneira de chegar a casa."Também com Vladimir Santos, 21 anos, licenciado em Economia, e Laissa do Canto e Emiliana Semedo, ambas com 19 anos e estudantes de Direito, todos da mesma zona. Descem na Pontinha, percorrendo depois a pé os dois quilómetros que faltam para Alfornelos.

"Há problemas de segurança, mas eu nunca fui roubada. O pior são as pessoas bêbadas, metem-se, querem bater uns nos outros", conta Laissa. Sem oia pa trás aconselha em crioulo Freddy. O que significa "sem olhar para trás", ou seja, não te importes com o outro.

Vão no autocarro das 04.30, a hora mais complicada, diz o motorista, Carlos Costa. Teresa Colaço, 22 anos, jornalista estagiária, e Maria Santos, que vive no Porto, regressam do concerto de Miguel Araújo e António Zambujo. "Só apanho este autocarro ao fim de semana, fica mais económico, de táxi seriam 12 a 13 euros. O principal problema é os autocarros serem de hora a hora e os atrasos", critica Teresa. Vão para a Amadora, descem nas Portas de Benfica.

Gangs são os maiores problemas

O 202 é uma das três linhas que Carlos Costa "comanda", além da 206 (Cais do Sodré-Sr. Roubado) e da 207 (Cais do Sodré-Feiteiras). Fica em último lugar na lista das suas preferências, "mas tem que se fazer". Vinte e três anos na empresa, os últimos 12 no turno da noite. Já pediu para sair mas não consegue. "Foi para conciliar com a vida familiar. O miúdo era pequeno e a minha mulher trabalhava ..."

Explica: "No início trabalhava-se bem. Era só tarifa de bordo, entretanto, houve muitas reclamações e aceitaram os passes. Raramente viajavam pessoas à borla, hoje é ao contrário, é quase tudo à borla. O que é que uma pessoa vai fazer?"

As seis linhas registaram mais de 1,3 milhões de passageiros em 2015, segundo a Transportes de Lisboa. Carlos Costa caracteriza, assim, os seus passageiros: "Até às 02.30 apanhamos quem trabalha e os jovens da noite, meio por meio, depois são só jovens. Os maiores problemas são com os gangs rivais, quando há brigas.

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