A bomba-relógio que há no silêncio do amor

Publicado a

Hoje, 26 anos passados sobre o início de um festival conotado com o sangue e o terror, embora olhando para terrenos mais seguros da esfera dita fantástica, um dos principais motivos de orgulho da sua direcção é a secção Orient Express, reveladora do cinema que se vai fazendo nos países asiáticos. Às vezes deslustra, às vezes arrebata, como foi o caso de Samaritan Girl, do sul-coreano Kim Ki Duk. Uma obra-prima. Até nos esquecemos de que, sendo o seu filme mais realista, não devia estar no Fantasporto, já que, de acordo com o argumento de Dorminsky para justificar a generalização do festival, "cinema fantástico é o que nos afasta da realidade". Pois este faz o contrário. Empurra-nos contra ela.

É a história de duas raparigas novas, colegiais, que para financiar o sonho de rumar à Europa experimentam a prostituição, uma delas investindo o corpo, a outra lidando com a "burocracia". Acontece que o esquema não é pacífico, primeiro pela clandestinidade, depois porque há, ainda que apenas denotado em pequenos gestos (e poucas palavras, claro, como é hábito no realizador), um amor entre elas.

Logo aí se prenuncia algo de trágico, mas apenas na esfera dos sentimentos, até pela suavidade com que somos conduzidos. Há, a princípio, uma sensação de harmonia naquele desvario, uma aura de brincadeira infantil, inocente, e a adesão ou desistência do espectador define-se nessa primeira meia hora. Mas os sinais de tragédia estão lá todos, na mudez dos mundos interiores, na decadência da vida urbana, na fragilidade da moral.

Há, então, um momento que rompe com o conto de fadas: o suicídio da rapariga que se prostitui, quando salta da janela do quarto do motel para escapar à polícia. Como ela bate no chão, também nós batemos. Acabou. A partir daí, explode tudo: o amor, a violência, a culpa e a redenção.

Procurando afastar o pesadelo, a outra miúda deita-se com todos os clientes da amiga e devolve-lhes o dinheiro que estes lhes tinham dado. Num dos casos é descoberta pelo pai, mas não o vê. Este, viúvo e protector, fica possesso, não tendo, no entanto, coragem de a confrontar, como se isso fosse aceitar a realidade. Ele prefere apagar as nódoas negras, negá--las, e isso leva-o a matar os homens que se deitam com a filha. São mortes brutais, sacrifício humano para segurar uma felicidade já morta.

É nessa queda livre que o realizador expõe a face predatória do amor e a complexidade das relações humanas, levando a sua veia poética ao limite do sublime. Prodigioso.

Diário de Notícias
www.dn.pt