Björn Andrésen tinha 15 anos quando um certo realizador, obcecado com a ideia de encontrar a beleza correspondente a uma descrição literária, lhe pôs os olhos em cima. Luchino Visconti, gigante do cinema italiano cujo nome pouco dizia ao adolescente em causa, tinha já passado pela Hungria, Polónia, Finlândia e Rússia, antes de aterrar em Estocolmo num dia frio do mês de fevereiro de 1970. Mirou Björn e teve a certeza absoluta da sua descoberta: aquele rapaz era o Tadzio que Thomas Mann descreve no romance Morte em Veneza, "belo como um deus jovem e delicado", "espetáculo evocador de visões míticas", "mensagem poética dos primeiros tempos, das origens da forma". Esse mesmo impacto podemos testemunhar no documentário O Rapaz Mais Belo do Mundo, de Kristina Lindström e Kristian Petri, que recupera, entre outras imagens de arquivo, o screen test de Andrésen, mostrando Visconti deslumbrado (o facto de ser gay não seria indiferente) diante da figura tímida e desamparada do seu futuro Tadzio, enquanto pede para as câmaras apanharem a sua fotogenia em tronco nu. Este foi o momento que definiu um traço de escuridão na vida do jovem sueco, engolido pelo ícone que o filme criou..No ano em que passa meio século sobre Morte em Veneza, a estreia (neste caso, na plataforma de streaming Filmin) de um documentário que oferece uma perspetiva pouco luminosa sobre essa adaptação cinematográfica de Visconti tem algo de sabor amargo. Como se, de repente, o menino da inefável silhueta recortada no horizonte do Lido, em quem o compositor Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) encontra a visão de um amor supremo, saísse da sua bolha de eternidade e se tornasse num trágico ser humano. Desde logo, vê-lo agora com 66 anos numa figura frágil e envelhecida, de longos cabelos grisalhos, só reitera a sensação de que a vida não o tratou bem. E Morte em Veneza, que lhe valeu o epíteto "the most beautiful boy in the world", dado pelo próprio realizador aquando da première em Londres, terá sido o início de uma contínua desordem interior..A dupla sueca Kristina Lindström e Kristian Petri começa por aí o retrato de Björn Andrésen, o rapaz que passou parte da adolescência na casa da avó materna, uma mulher ambiciosa que o levava a audições, acabando por conseguir, indiretamente, fazer do neto uma estrela, sem se importar se era realmente isso que ele queria... O seu papel de Tadzio deu-lhe fama instantânea. Chegou a passar um breve período no Japão, onde foi recebido por uma multidão de fãs como o primeiro ídolo do Ocidente, seguindo-se a gravação de um especial de Natal, de um anúncio publicitário e de canções pop em japonês, para além de ter inspirado toda uma geração de cartoonistas de manga. E passou também por Paris, num regime mais obscuro de exploração de "talento"..A verdade é que, ao relatar as suas experiências, Andrésen revela o mesmo sentimento confuso com que entrou nelas. Nessa medida, O Rapaz Mais Belo do Mundo funciona como um olhar pungente sobre uma indústria devoradora que não protege as suas estrelas infantis. No caso de Andrésen, a personagem de Tadzio ficou-lhe tão colada à pele que, a certa altura, o converteu num puro objeto de desejo, com os respetivos efeitos secundários..Mas o documentário vai mais fundo na narrativa traumática de Andrésen, que contempla dois momentos particularmente trágicos: a morte da sua mãe, por suicídio, e de um filho seu, bebé, por síndrome de morte súbita. Este último seguido de uma longa noite escura de depressão e álcool... Olha-se para o velho Andrésen e estão marcados na sua fisionomia os vazios de um percurso arruinado, tal como as paredes com tinta a descascar do corredor que ele atravessa de costas para a câmara na sequência inicial do filme. Digamos que aqui é o ator a entregar-se a outro papel: aquele que conta a história da sua vida, entre o passado e o presente (este que inclui uma situação de ordem de despejo num apartamento caótico). Ainda há relativamente pouco tempo vimo-lo no filme de terror Midsommar - O Ritual (2019), de Ari Aster, no papel de um homem que sacrifica a sua vida numa cerimónia pagã. Seria mais uma tentativa de cortar com a memória da pureza de Tadzio?.Numa entrevista ao The Guardian, Björn Andrésen fez questão de dizer que não está à procura de atenção: "Tive uma overdose disso há 50 anos." Deixou-se filmar ao longo de seis anos para este documentário porque confiou na dupla de realizadores, que lhe manifestaram a intenção de fazer "um filme cinematográfico, e fazê-lo graciosamente, como Morte em Veneza". É por isso que, no final, Andrésen regressa ao Lido, o lugar onde não sabe se foi feliz. Durante demasiado tempo, a sua tristeza levou a melhor..dnot@dn.pt