A Bela que mostrou Portugal ao monstro Hermès

A artista assina um modelo do icónico lenço da marca francesa. No dia 2, inaugura a exposição Le Tango de Nos Amours na galeria Alecrim 50, em Lisboa. Bela Silva fala sobre o universo que criou e em que se criou
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É a primeira portuguesa a desenhar um carré da Hermès, o icónico lenço da casa francesa criado em 1937: 90x90 cm de seda companheiros de Jackie Kennedy, Grace Kelly ou da rainha de Inglaterra. O dela chama-se La Maison des Oiseaux Parleurs. Bela Silva diz que "há muitos anos que isto era um sonho", e o carré parece, para quem o vê nas suas diferentes cores, uma janela para o universo da artista. A cerâmica, a pintura, o desenho, até o recorte e a colagem com papéis e tecidos que vai comprando, sobretudo em mercados de antiguidades, compõem essa obra, mas há sempre qualquer coisa na artista que é mais do que essa síntese à primeira vista apreensível.

A mãe trabalhava em moda. "Criava padrões de papel, trabalhava para uma marca alemã, aquilo depois era cortado, lembro-me dela com as medidas e com as réguas", recorda numa passagem por Lisboa, onde cresceu, antes de voltar a Bruxelas, agora a sua cidade, depois de Chicago e de Nova Iorque. "As minhas tias desenhavam muito, a minha mãe também. O meu pai fazia objetos - baldes, regadores, tudo -, o pai dele fazia sapatos. Há muito esta coisa do fazer [em casa]." Ela era a criança que sempre gostou de desenhar e a quem ofereceram um livro de Picasso aos 6 anos, idade em que fez a sua primeira peça, um sapato de barro. Espicaçavam-na? "Nunca foi necessário, nunca foi preciso pôr a cenoura à frente do cavalo."

Perguntamos-lhe se a acompanha desde pequena aquele universo povoado de animais e seres imaginários que nos dá a ver nos painéis da estação de metro de Alvalade, em Lisboa, em exposições como O Jardim das Tentações, no ano passado no Museu de Arte Antiga, nos seus desenhos, ou nas suas colaborações com a fábrica Bordallo Pinheiro e a Vista Alegre. "Em miúda o meu sonho era ir trabalhar para a Walt Disney, e lia muitos contos. O maior castigo que me podiam dar era não ver os desenhos animados. Na altura preferia levar um estalo. O meu pai mandava-me fazer as coisas e eu resmungava, fazia aquilo que as mulheres não devem fazer, ainda hoje a sociedade quer muito uma mulher que esteja sentada ao lado do marido, calada, low profile, e eu nunca fui assim muito low profile."

Mais à frente na conversa, numa sala da galeria Alecrim 50, em Lisboa, onde a partir de dia 2 inaugura a mostra Le Tango de Nos Amours - esta já não uma janela mas uma porta para o seu universo -, haveria ainda de falar das dificuldades de ser mulher, mãe e artista ao mesmo tempo. "Há mulheres que ficam em admiração: "O meu love é artista." Mas mulheres e artistas é mais difícil", afirma aquela que, depois de sair de Chicago - estudou no Art Institute - se mudou para Nova Iorque, onde fez ilustrações para o The New York Times. "Não quis seguir a carreira de ilustradora, porque tens de ilustrar sempre o que te dão. Não tem a ver comigo", justifica a artista que, aliás, avisou a Hermès que bloqueava quando tinha um tema, e por isso lhe foi dada liberdade para chegar até àqueles pássaros, àquela partitura, e às muitas formas que cada um decifrará. Ainda sobre a ilustração para o jornal, diz: "E depois também tens o political correct. Lembro-me de na altura ter feito um menino em cima de uns livros a desenhar e de eles dizerem que as nádegas estavam demasiado redondas, evidentes. É o que eles dizem: não é por eles, é que a América é muito grande, e depois eles recebem queixas."

O seu ateliê e grande parte da sua vida estão agora em Bruxelas, onde gosta sobretudo "da parte das antiguidades", dos museus e da centralidade geográfica, que lhe permite apanhar um comboio e chegar a Londres ou Paris. "Quando cheguei lá foi difícil: por causa do clima, dos teus amigos; tens saudades, mudas de novo para um outro país. As histórias de emigração nunca são fáceis, são sempre vidas de desassossego: acabas por ser estrangeiro lá e cá." É em Bruxelas, portanto, que Bela, 52 anos, continua a trabalhar a cerâmica - tantas vezes em evocações marinhas, e daí que os belgas, conta, intuam que ela vem de ao pé do mar - sozinha, um trabalho de força de muitos anos que o corpo já acusa, e que ela por vezes descansa com o desenho. "O desenho é uma dança, eu danço", conta, num sorriso.

Começou por fazer cerâmica na Faculdade de Belas-Artes. "Mas na altura, trabalhar com o barro era considerado craft e tinha uma conotação negativa, não eras artista. Eu é que sempre me estive nas tintas, sempre achei um material em que é possível fazer tanta coisa diferente. Ficávamos com uma conotação de artes decorativas, de que eu gosto muito, acho que dizem muito de um povo", argumenta.

Bela Silva também está também, por exemplo, naqueles cadernos que fez para a loja A Vida Portuguesa, inspirados nos bonecos de barro de Barcelos e de Estremoz (hoje património da UNESCO), em desenhos de joias portuguesas do século XVIII e em padrões de chita; como está naquele carré da Hermès, já à venda em Portugal (360 euros); ou nisto que diz: "Se mexe comigo, se é a minha paixão, é o que eu faço Caramba! Só vivemos uma vez."

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