Lembra-se de voar num Dakota, pilotado pela sobrinha de sua mãe, Júlia Brito Pestana, a primeira mulher a tirar o brevet em Angola. «Na mesma altura uma outra senhora também o fez. Tenho ideia que houve certa polémica porque cada uma delas dizia que era a primeira, mas eu era muito novinha para fixar essas coisas.» Júlia esteve ao serviço da Divisão dos Transportes Aéreos e fez muitos voos de ligação interna. Figura em alguns registos da época como uma mulher de charme e que gostava de exibir os seus dotes de aviadora aos fins-de-semana, em que os voos rasantes sobre o hangar do aeroporto faziam as delícias dos mirones. «Das acrobacias não me lembro, mas cheguei a voar com ela para Luanda. Recordo-me de que era uma mulher muito bonita», conta Bela, a quem a vida reservou outros voos.
«Nasci em Moçâmedes em Setembro de 1929. Agora chama-se Namibe. É pegado ao deserto do Kalahari», explica Bela Faria, como gosta de ser chamada. Aos 81 anos são muitas as memórias que saem em catadupa. Umas boas, outras menos boas. De uma vida cheia mas difícil, com quase tantos anos passados em África como em Portugal.
As raízes africanas são plantadas em finais do século XIX pelo avô materno, natural de Olhão, e que integrou as expedições militares portuguesas no território. Deixara a mulher e filha no Algarve e passariam 17 anos até que lhes pedisse que se juntassem a ele. «Nessa altura já tinha outra filha mulata, da lavadeira que ia a casa e que continuou a trabalhar lá. A filha dessa senhora tornou-se na tia Margarida. A minha mãe já nasceu em Moçâmedes, em 1911.»
Às origens sulistas do lado materno, acrescentou o pai de Bela o carácter forte do Norte de Portugal. Natural de Vila do Conde, casou com sua mulher ainda esta não tinha 18 anos. «Nunca foram ricos. Ele foi para Angola, para mandar dinheiro para a mãe.» Bela nasce logo a seguir. Com apenas três meses faz a primeira viagem à metrópole, para ser apresentada à avó paterna, de quem herda o nome. Regressados da viagem, seguem para Luanda e, mais tarde, para Lourenço Marques, onde nasce o irmão Zeca. «O meu pai procurava sempre uma maneira de melhorar de vida. Tinha sempre a vantagem de falar muito bem francês, inglês e alemão. Inclusivamente, também conhecia o código morse e, quando começou a Segunda Guerra Mundial, ele estava em Luanda, onde recebia as notícias do estrangeiro e traduzia-as para os jornais e rádio.»
A estada em Moçambique não foi muito demorada. Dois anos depois estavam a caminho de Joanesburgo: «Dizem que não nos lembramos de nada com essa idade, mas lembro-me bem dos petromax que se usavam para iluminar as casas, porque lá não havia electricidade.» Também se lembra das trovoadas: «A minha mãe colocava-me a mim e ao meu irmão bebé em cima da cama, tapados com o cobertor para nos acalmarmos. Tínhamos muito medo.»
Regresso a Angola
Voltaram a Luanda. A instrução primária foi feita numa escola oficial e o primeiro ciclo na Congregação das Irmãs de São José de Cluny. «O meu colega de carteira da terceira e quarta classe era Diógenes Boavida, que mais tarde seria ministro da Justiça de Agostinho Neto», lembra Bela, que refere que «não sentia que houvesse racismo, mas diferença de classes, tal como aqui. Embora já naquele tempo se soubesse da exploração de negros, nas roças e fazendas, segundo testemunhos de brancos que lá trabalhavam, como chefes de posto e amigos de meu pai para quem ele trabalhava na elaboração de escritas».
Felisbela fez a escola até ao sexto ano, o equivalente ao 11.º actual. O sétimo ano iniciou-o em Luanda, mas acabou-o em Portugal, no liceu Carolina Michaelis: «As férias escolares eram de Janeiro a Março e foi nessa altura que os meus pais resolveram vir para o Porto. Em Setembro ainda ali estávamos, pelo que tive de reiniciar o sétimo ano. No entanto, o negócio do meu pai não correu bem e quis voltar para Luanda.» Para que Bela não perdesse mais uma vez o ano, planearam deixá-la na metrópole, mas ela adoeceu. O diagnóstico do médico foi determinante: «Padece de nostalgia.» Só havia uma cura: regressar com a família a casa.
Já adulta, Bela fez dos algarismos o seu ganha-pão. Trabalhou como contabilista, tesoureira e secretária. Ajudara o pai, um homem «autodidacta, muito instruído, que trabalhava como guarda-livros, uma espécie de gerente comercial», e mais tarde auxiliou o marido sempre que era preciso mais uma cabeça para fazer as contas e uma mão para a gestão dos negócios. Mulher de números, teve quatro filhos com intervalos de nove meses. Uma vida de contas certas, sem nada por saldar.
«O meu marido fora trabalhar para Angola. Via-me fazer todos os dias o percurso entre a minha casa e o trabalho e começou a andar atrás de mim.» O namoro foi oficialmente pedido aos pais: «Eles aceitaram e passámos a namorar ao portão.» Não passou muito tempo até pedi-la em casamento e alargarem os locais de encontro. «Mas quando queríamos passear ou ir ao cinema a minha avó ia connosco. Íamos para a ilha de Luanda e ficávamos ao pé de um candeeiro para ela poder fazer o seu tricot. Ela já tinha 80 anos, mas não era como eu agora. Andava de carrapito e vestia-se como se vestira no Algarve, de onde era». Seis meses depois casaram.
«Casei em 1952, com 22 anos. A minha filha mais velha nasceu no ano seguinte.» Em Março de 1955 estava em Lisboa, onde deu à luz a segunda filha. «Tinha ela três meses quando regressámos de barco para Angola. Quando a minha segunda filha tinha 9 meses, engravidei outra vez do meu primeiro filho rapaz. E quando ele tinha 9 meses voltei a engravidar.» Porque os tempos eram outros e os feitios não se mudam, Bela não pôde contar com o marido para cuidar dos filhos. Mas não deixou de ter ajuda, na pessoa de Francisco, «um criado negro que lá trabalhava em casa, que era muito amigo dos meus filhos e muito dedicado à nossa família», assim como das pessoas que a rodeavam, como os pais e irmãos e as amigas.
Com quatro filhos pequenos, a vida não foi fácil. No entanto, por vezes havia a possibilidade de passear até ao cinema Miramar, construído muito próximo de uma das casas onde Bela viveu. Dessas noites guarda doces memórias: «O cinema Miramar, ao pé do Clube de Caçadores, era enorme, feito em anfiteatro e com o ecrã ao fundo. Quando apagavam as luzes via-se o mar e as luzes na baía de Luanda.»
Bela divorciou-se em 1964 e, em fins de 1965, veio para Lisboa com os quatro filhos pequenos. Dava início a uma segunda vida. O tronco familiar continua agora em Portugal mas não esquece nunca que as suas raízes estão em África: «O meu coração é angolano e as saudades só vão morrer comigo.»