"A banda desenhada ainda é um meio muito virgem"
Marco Mendes já não se lembrava de que naquela manhã cinzenta o visitaríamos no Porto para conhecer o seu ateliê e a sua coleção de álbuns de banda desenhada. É ele o autor em destaque da edição deste ano do Amadora BD, que começa hoje. Foi o vencedor da edição passada dos Prémios Nacionais da Banda Desenhada, onde o seu Zombie foi eleito o melhor álbum português.
É dele o cartaz deste ano do Amadora BD. Lá estão os azuis que o caracterizam, e as pessoas nas suas vidas, neste caso vistas através das várias janelas de um prédio. Talvez um deles seja Marco, de 38 anos, que se põe a si mesmo nas suas obras, fortemente autobiográficas; ou então ele será ali mais como o gato do cartaz que, no telhado oposto ao prédio, assiste àquelas vidas.
No ateliê está um autorretrato seu, ainda por acabar. Cheira a tinta, óleo, talvez. Na sala estão as estantes que contam grande parte da sua história com BD, e uma carta para a sua namorada turca, Esra Arslan, cujos sucessivos e-mails a dar conta da situação política e social na Turquia estão no centro do seu próximo livro.
Marco, também professor de desenho e de banda desenhada, mostra parte das pranchas do livro que já tem. Na verdade, ele e Esra têm "algum receio das consequências deste livro" para ela, mesmo que a arquiteta turca agora fique por Portugal. O livro começa quando o presidente Recep Tayyip Erdoggan "já estava a endurecer o discurso". Depois do golpe de Estado falhado de julho, conta Marco, Esra viu "pessoas que conhece presas, tem uma amiga cujo pai foi morto. É uma ditadura, há ecrãs de propaganda por toda a parte. E os apoiantes dele [Erdogan] agora sentem-se no direito de fazer o que querem, agora tens ataques a pessoas na rua que são opositores, ou homossexuais..."
A BD voltada para a vida
Qualquer ponto da conversa pode ir dar ao centro da relação entre a BD e Marco Mendes, que nesta edição terá - no Fórum Luís de Camões, núcleo central do Amadora BD - uma exposição em torno do álbum Zombie. Era ele um miúdo, já depois de ter saído de casa dos pais aos 15 anos (é irmão do escritor Nuno Camarneiro), na Figueira da Foz, e estava "no primeiro ou segundo ano" da Faculdade de Belas-Artes do Porto quando conheceu "banda desenhada mais artística."
"Aquilo abanou-me completamente. Descobri autores que não fazia a mínima ideia de que existiam, tal como o Joe Sacco, o Peter Cook, que saíam completamente fora da lógica do entretenimento e faziam BD adulta, muitas vezes muito politizada", recorda o autor entre um e outro cigarro, com os pombos a arrulhar no telhado. "Percebi que podia contar histórias sobre o meu dia-a-dia, o que me rodeava, sem me sentir ridículo, anacrónico."
"Toda a tradição da história da arte está muito ligada à representação dos universos dos artistas, as suas famílias, os amigos, o espaço em que habitam, as paisagens que veem... Na arte contemporânea, sobretudo desde os anos 1980, houve uma grande separação entre arte e vida. Hoje em dia as artes plásticas estão demasiado voltadas para si próprias. E na BD isso ainda não existe, ainda não se passou o pós-modernismo, a BD ainda é um meio muito virgem", alvitra.
Não espanta, por isso, que Marco diga que os artistas que mais o "abalaram" e que segue com mais regularidade "são artistas que falam de assuntos muito importantes e que têm uma postura muito humanista. Por exemplo o Art Spiegelman, com a obra do Holocausto, o Maus. Há um autor que sigo bastante, tenho a obra dele toda, o Joe Sacco, que faz jornalismo em BD e tem uma série de livros passados na Palestina, onde esteve bastante tempo a recolher testemunhos para depois fazer as suas histórias. Mas antes dele há um tipo que é o Bill Mauldin, que tem um livro muito grosso, este aqui." Marco agarra nos dois volumes de Willie & Joe, que valeram a Mauldin o seu primeiro Pulitzer. "Ele era cartoonista e com 18 anos alistou-se, foi para a II Guerra Mundial, e fez toda a guerra, desde que os americanos entraram até ao fim. O trabalho dele era fazer cartoons para o jornal do exército americano, que era distribuído pela Frente." Cartoons reunidos em Up Front, que Marco emprestou a alguém.
Outro que refere como um dos seus autores favoritos é Jerry Moriarty, que se considera a si mesmo um paintoonist, ou seja, pintor e cartoonista. "Para mim é dos grandes artistas do século XX. É um americano, já é velhinho, ele pinta quadros. Faz sequências narrativas, conta histórias, mas em grande formato, em tela. O trabalho dele pode ser visto como pintura, BD, é compilado em livro, conta histórias." Um dia, Marco "estava com os copos" e escreveu-lhe um e-mail "a dizer que adorava o trabalho dele, que era muito importante e tal". E Moriarty respondeu. Desde aí trocaram mais alguns e-mails. "Uma coisa que para mim foi muito entusiasmante na BD foi que, por ser um meio ainda relativamente bastardo, não há muito dinheiro envolvido. E mesmo os grandes autores do meio são pessoas incrivelmente acessíveis."
Nas estantes está ainda From Hell, de Alan Moore e Eddie Campbell, Stuart Carvalhais, o pintor Carlos Botelho, "um dos grandes génios" da BD, We Are on Our Own, da israelita Miriam Katin, com quem Marco também se corresponde. "Não me interessa minimamente a BD de super-heróis nem a BD mais infantil ou juvenil, mas desde os primórdios até ao presente sempre houve autores a trabalhar fora dessa lógica, a criarem grande arte. Logo a começar pelo Rafael Bordalo Pinheiro, que é dos maiores pioneiros da BD a nível mundial."