A banca e o tempo
A destruição de valor dos bancos portugueses é um facto impressionante. Devemos indagar as causas, são várias e não são simples. Quais? O desempenho da economia portuguesa e a banca como seu espelho? A alavancagem financeira? A crise internacional de 2007-08? O desequilíbrio das finanças públicas? As políticas troikianas de austeridade? A alteração de circunstâncias do risco de crédito? A zona euro e os regimes europeus da banca? As regras das imparidades? Os mecanismos e as instituições de controlo? A governança dos bancos? etc. O tempo? Em tal indagação, o tempo não será a principal variável explicativa, mas será um coadjuvante de respeito, daqueles que reagem e danificam se forem maltratados.
Tempo a mais, tempo a menos...
Vejamos alguns exemplos. A redução do rácio "crédito/depósitos", ditada pela troika, foi drástica e demasiado rápida, criou problemas no crédito. Os novos requisitos de capitais próprios e os novos critérios de apuramento das imparidades precipitaram-se sobre a banca, não deram tempo ao tempo.
O caso BPN foi flagrante: o programa de salvação de 2008 ia em quatro meses quando foi bruscamente travado; a administração anterior tivera todo o tempo para fazer gestão ruinosa; e a administração seguinte, estatal, teve três anos para vender mal o banco nacionalizado; o melhor do banco acabou nas mãos do angolano BIC, a preço da chuva. Também a este preço, acabou o melhor do Banif nas mãos do espanhol Santander, em 2015, depois de a guilhotina do tempo arrasar planos e pressupostos. E de igual modo poderá acabar o melhor do BES, se vencer a pressão de venda do Novo Banco.
Em toda a arte de gerir o tempo, a zona euro tem uma pesada co--responsabilidade e não vai ficar bem no registo quando se escrever a história bancária destes anos. Nas horas mais críticas, os eurocratas não puderam ou não souberam estar à altura dessa fundamentalíssima condição da banca que é o tempo.
Três ideias basilares...
As medidas apressadas podem deteriorar as situações: quando visamos melhorias, colhemos piorias. Com as pressas apercebidas pelos clientes, cedo emerge e se auto-alimenta a desconfiança. Os balanços dos bancos têm uma parte quantificada e outra não, esta não damos por ela nem está lá explicitada, é a reputação. Se dermos por ela, será mau sinal. Quando a confiança e a reputação entram em terreno escorregadio, pode o balanço visível ser arrastado para o abismo pelo balanço invisível, então não há balanço que resista. Neste contexto, o tempo mal escolhido pode ser calamitoso.
Uma coisa é evidente. O tempo da banca mudou, perdeu maturação. A velocidade das operações e a facilidade de mudança de operadores e titulares tornaram-se, por vezes, pouco controláveis. A banca viu abaladas as suas clássicas referências. Antes também havia erros e temeridades, mas a densidade e o impacto eram, julgo saber, muito menores.
Uma dessas referências, que precisamos de repor em bom cultivo, é o conceito de "função social". A banca deve ter boa rentabilidade, claro que sim, porém o seu primeiro desígnio é construir pontes entre depósitos e crédito, os dois grandes lados da função social. Uma segunda referência é o tempo, de que vimos falando. Estas duas ideias basilares entraram em desestruturação quando os bancos enveredaram por vias ignotas, escancaradas pela globalização e internet, e saíram, em parte, da órbita das suas práticas, produtos e riscos, da sua experiência secular, das suas origens e fins. E tudo entronca numa terceira referência: são as pessoas, a sua capacidade e hombridade, quem antes e depois de tudo faz a consistência das instituições, incluindo a conformidade a princípios e valores que dão pelo nome de ética. O primado das pessoas e da ética carece de ser redescoberto continuamente, muitos de nós o vêm dizendo - veja-se, por todos, A Crise Financeira: Aprendemos as Lições?, que Carlos Tavares acaba de publicar.
A sabedoria do tempo...
Talvez o banqueiro tradicional seja pouco compaginável com a neonoção do tempo, quando o tempo passa a outro padrão e deixa de ser estabilizador de situações, ou passa mesmo a desestabilizador. Talvez estejamos no meio de uma indeterminável fase de transição. Ou talvez estejamos, com algum optimismo, numa sala de lento recobro, que suponho ser a tese de Robert Shiller no seu Finance and Good Society (2012). Ele antevê a reconquista dos méritos e do bom nome da banca no exercício da dita função social, contudo advoga a liberdade, não a restrição, da inovação financeira.
No meio de tantos estragos e incertezas, alguns evitáveis, penso que devemos dar, não retirar, tempo à banca para que restaure equilíbrios tangíveis e intangíveis dos seus balanços e das suas valorimetrias. Se muito do crédito hoje malparado foi mal decidido, também muito dele foi bem decidido, mas sobreveio séria alteração das circunstâncias (eis o tempo), para lá do que era razoável prever. Aqui se pode prefigurar o alcance do artigo 437.º do Código Civil. Este, afinal, é um princípio de ordem geral que dispõe sobre graves, exógenas e supervenientes anomalias no decurso do tempo de um contrato. Se o cito, é apenas para lembrar as relatividades do tempo e para concluir que as referidas novas imparidades, até pelo alarme social, são um contra-exemplo da sabedoria do tempo: gradualismo, doseamento, comedimento, temperança, proporcionalidade, sobriedade; sentido do oportuno versus prematuro ou tardio.
Economista, Ex-Ministro das Finanças