"A Avenida de Roma tinha uma mancha escura. As pessoas vestiam-se de preto"

A partir de quinta-feira, Portugal terá mais tempo de democracia que de ditadura. Três gerações falam do que ganharam, em especial a liberdade. É a avó e a neta que estão mais próximas na política.
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Maria Helena Correia tinha 42 anos no dia 25 de abril de 1974. Recorda um país vestido de preto. Escuro nas ruas e nas casas; negro nas ideias e formas de expressão. Escuridão que o filho, Cláudio Beltrán, confirma, embora pinte essa realidade em tons de cinzento, talvez porque tivesse apenas 15 anos quando chegou a democracia. Iniciou-se nas manifestações pela mão da mãe. Rita Gonçalves, a neta, de 20 anos, não conheceu o tempo da ditadura, muito do que sabe é pelas memórias da avó. E está mais próxima dessas ideias do que o pai.

Três gerações de uma mesma família para lembrar que esta quinta-feira Portugal completa mais tempo de democracia do que de ditadura. São 17.500 dias de liberdade., contra 174 499. Com posições políticas por vezes diferentes, mas sem nunca deixarem de exercer o voto, "um direito" que adquiriram com a democracia, um "legado" da mãe e da avó, que faz questão de lembrar os dias de votação.

"Tire-me lá o dona, se faz favor!", começa por esclarecer Maria Helena Correia, 90 anos feitos em janeiro. "Tenho mais anos de liberdade que de ditadura", ri-se.

Foi professora de música, a sua especialidade era o piano, mas também andou pela expressão corporal, e nessa área fez caminho. Não era dada às ciências exatas, as eleitas pelo pai, homem rígido e que se poderia dizer do regime.

"O que ganhei com o 25 de Abril?" Pensa. "Era separada e geria a minha vida, tinha essa liberdade, mas ganhei maior liberdade a todos os níveis. Nas leis, sobretudo no que dizia respeito à mulher, esta não tinha direito a coisa nenhuma, não havia mulheres diplomatas, juízas, etc., só depois do 25 de Abril. Não podiam ir a um café à noite, então por essa província fora era impensável."

A mãe morreu tinha ela dois anos e meio, passou a viver com os avós numa quinta no Lumiar. "Era tudo quintas, vivi onde hoje é o Colégio São João de Brito." Mais tarde viria a dar aulas de música na instituição, quando conseguiu ultrapassar o desgosto de aquela já não ser a casa da família.

O avô morreu e foi viver com o pai no centro de Lisboa tinha cinco anos. E, como as notas não eram boas, Maria Helena andou de escola em escola, colégios privados, também em estabelecimentos públicos. Uns mistos e outros que não permitiam esse cruzamento. Mesmo muitos dos mistos tinham turmas de meninas e outras de meninos e recreios próprios. "De dois em dois anos mudava de escola, nunca guardei amigas, o que era complicado. Estive num colégio misto até à 3.ª classe, depois fui para uma escola de freiras, só de meninas, nada era permitido."

Foi para o conservatório de música, mas acabaria por não fazer o exame final devido à sua primeira grande intervenção como ativista, embora não lhe dê esse nome. "Tive um conflito com o diretor, o Ivo Cruz [pai], terrível, não nos podíamos encostar à parede porque a sujávamos, não podíamos ir sem meias, não podíamos usar saias e mangas curtas, não nos podíamos pintar, embora isso para mim não fosse importante, mas era todas as outras coisas", conta.

Era colega de uma jovem que considerava um grande talento a tocar piano. "Tocava muito melhor que eu, também comecei tarde." Apostou nela para o prémio interno Beethoven, com o qual poderia concorrer a uma bolsa da Gulbenkian para estudar em Paris. "O diretor não lhe atribuiu o prémio, ela não era rica nem tinha nome sonante. Aconselhei-me com um tio que era juiz e organizei recitais em casa com os professores e pedia-lhes um parecer. Todos atestaram o seu grande talento e ela conseguiu a bolsa."

Aconteceu no final do ano letivo e ela teve medo de represálias. "Era capaz de me dar um 10, uma nota que não queria. Entretanto fiz cursos de música, de aperfeiçoamento, etc.", explica Maria Helena Correia.

Tinha três filhos, a Leonor, hoje com 64 anos, o Cláudio, com 63, e a Helena, com 57, quando decidiu separar-se. Um escândalo. Teve de pedir a Roma a "separação canónica", mais de três anos à espera pela anulação do casamento, que só chegaria depois do 25 de Abril. "Foram anos complicados. Costumávamos viajar para o estrangeiro e, no primeiro ano da separação, fui com os filhos para os Açores de férias. Era precisa uma autorização do marido para sair do país."

Um casamento que chegou ao fim e que foi muito importante para a sua consciência política. Ele é argentino. "Não queria homens portugueses, só pensavam neles, muito machistas, eu tinha uma certa necessidade de liberdade, senti sempre isso. O meu ex-marido era um homem da oposição na Argentina, muitas coisas aprendi nessa fase da minha vida, como uma certa abertura que não havia em minha casa. A família dele era viajada e mais aberta."

Muito diferente do ambiente que se vivia em Portugal. "A Avenida de Roma, que era nova e muito bonita, tinha uma mancha escura. As pessoas que se viam nas ruas vestiam-se de preto, de forma pesada, muito fechada. As mulheres vestiam-se de escuro, só as estrangeiras usavam roupa garrida." Mesmo no tempo de Marcello Caetano, do qual nunca acreditou que protagonizaria um regime mais aberto. "Em casa do meu pai, jovem, assistia aos discursos da Emissora Nacional do Salazar, do Marcello Caetano. Ele tinha sido comissário nacional da Mocidade Portuguesa, diziam que podia ser a primavera, nunca acreditei nisso."

A 28 de setembro de 1968, Marcello Caetano passou a presidir ao Conselho de Ministros do Estado Novo e até ao 25 de Abril. Foi a mãe de uma aluna, a quem Maria Helena dava aulas particulares, que a avisou da revolução. Ficou em casa, esperançosa. "Há anos que estava farta e cansada da ditadura. O livro das "três Marias" foi determinante para essa consciência." Refere-se a Novas Cartas Portuguesas, cuja publicação faz 50 anos este ano. Foi proibido e as autoras levadas a tribunal, processo que só terminou porque houve Abril. "Tinha uma livraria que me guardava os livros às escondidas. E também trazia do estrangeiro."

O 1.º de Maio foi "uma loucura, extraordinário", recorda-o como o momento mais vibrante da democracia. "Foi único, nunca mais vi igual. Nunca vi tanta gente, as pessoas nasciam nas ruas. Extraordinário, não só pela quantidade de gente, mas pela solidariedade, todos nos falávamos bem, sem nos conhecermos", emociona-se. E fez muitas manifestações. "Todas. A minha filha mais nova ia às cavalitas de amigos, andávamos quilómetros, fazíamos Lisboa inteira. Nunca vi uma manifestação tão forte, intensa, e não nos perdíamos uns dos outros, impressionante. Fiz todas as manifestações, Avenida da Liberdade, Terreiro do Paço, Fonte Luminosa, em frente à prisão de Caxias, ao jornal República, tudo."

Uma das primeiras coisas que fez a seguir ao 25 de Abril foi inscrever-se no PS, é a militante número 78 . "A única coisa que me interessava era ajudar a democracia, nunca quis ficar em lugar de eleição." Foi uma das fundadoras do grupo das Mulheres Socialistas, dirigiu a secção de Oeiras do PS, envolveu-se em muitas eleições e campanhas. Recorda especialmente Mário Soares: "Um homem extraordinário, a quem o país deve muito." Além da militância de base, esteve quase três anos no Ministério da Educação, no tempo de Sottomayor Cardia.

Mais tarde envolveu-se no Centro Escolar Republicano Almirante Reis e tornou-se uma missão. "Foi uma amiga que me levou e lá fiquei, precisávamos todos de apoiar o Centro e eu já não era necessária no partido, tinha feito o que era preciso. E achei mais interessante dedicar-me aos centros. Até hoje."

Cláudio Beltrán tinha 15 anos quando se deu o 25 de Abril. Já tinha uma noção da política do país. Sentiu que finalmente as pessoas podiam "seguir o seu caminho". E acompanhava a mãe nas conversas, percebia que havia alguma contestação ao regime.

"As memórias de Portugal não eram a preto, mas a cinzento. Era um país fechado em relação ao mundo, o que se sentia até nos pormenores, por exemplo, na área comercial não havia os produtos que havia lá fora. Tinha este olhar porque todos os anos saíamos - França, Suíça, Alemanha, países com uma mente francamente muito mais evoluída. Era um país estagnado."

Estudou inicialmente no Colégio Alemão, depois passou para o Liceu de Oeiras, que só teve turmas mistas depois do 25 de Abril. Começou por ir às manifestações com a mãe, um ano já ia com os amigos. Recorda a manif de apoio ao VI Governo Provisório, era Pinheiro de Azevedo primeiro-ministro, em novembro de 1975, no Terreiro do paço. "Foi toda a gente, de todos os partidos, foi das poucas conjuntas, nessa altura havia guerras inacreditáveis entre partidos, a fase do PREC [Processo Revolucionário em Curso], vivia-se o dia a dia nessas guerras e lutas."

Elege a liberdade de informação e o fim da censura como uma conquista "imbatível" da democracia. Contesta muito do que se passou a seguir. "Sou muito crítico, muito mais do que a minha mãe, até porque sofri na pele como empresário. Houve erros enormes, o que nos atrasou e prejudicou. O país não estava preparado e, infelizmente, gente que tinha responsabilidades foi muito egoísta", justifica.

Cláudio Beltrán situa-se na ala do PSD/CDS, mas ajudou a mãe em algumas lutas, chegou a votar em Mário Soares. Considera que Portugal avançou imenso, nem tem comparação com os tempos de ditadura, mas gostaria de ter visto mais na ação educativa. "A parte mais desprezada é a educacional, há um défice, a educação não são só conhecimentos, são princípios humanistas, civismo. Temos demorado muito tempo a perceber isso."

Rita Gonçalves tem 20 anos, estuda em Bilbau, no 2.º ano do curso de Ciências da Comunicação, no âmbito do programa de Erasmus. É uma dos seis netos de Maria Helena, cujas idades variam entre os 18 e os 30 anos. É filha de Helena.

Votou logo que pôde e fez parte das mesas de voto nas legislativas. Tal como a avó, Rita milita no PS, na Juventude Socialista de Oeiras, mas não quer fazer disso carreira. "Penso continuar a militância, mas não quero seguir a política, estou mais virada para a comunicação empresarial, para os recursos humanos."

Muito do que sabe da ditadura foi através da avó e não hesita em afirmar que a Revolução "deu voz às mulheres". Recorda as homenagens e manifestações que partilhou com Maria Helena. "Levou-me desde pequena a vários eventos do 25 de Abril, por exemplo. Tive a sorte de viver numa família e com amigos que sempre preservaram a liberdade, que me disseram o quão importante é. Admiro as pessoas que, como a minha avó, lutaram contra a falta da liberdade. A liberdade é um início para tudo", justifica.

Talvez por toda essa ambiência, sente-se mais humanitária e com mais consciência política que alguns jovens. Lamenta que parte da sua geração não se interesse pela política e, sobretudo, os que não defendem direitos democráticos. "Nas mesas vi muitos votos a puxar para partidos que vão contra os ideais do 25 de Abril, o que demonstra que as pessoas da minha geração, que não viveram nos tempos da ditadura, têm quase tudo como adquirido, não tiveram que lutar, devemos dar valor e preservar a liberdade. Agora, a moda é votar em partidos de extrema-direita, contra os direitos de outros, nada solidários e tolerantes." Mas também vê jovens a lutar pelo que se conquistou com o 25 de Abril: "Uma aproximação da igualdade de direitos para todos."

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