"A arte não é tão desafiadora como a vida"
Três anos depois, Devendra Banhart está de volta aos discos com Ape in Pink Marble, editado a 23 de setembro. Antes passou por Portugal, para falar sobre a vida e a sociedade atual, dois temas centrais neste novo trabalho. Devendra Banhart nasceu no Texas há 35 anos, mas ainda criança mudou-se para a Venezuela, o país natal da mãe, depois de os pais se separarem. Regressou aos Estados Unidos na adolescência, altura em que começou a fazer música. Deu-se a conhecer em 2002, com um álbum que compilava alguns temas feitos nos anos anteriores.
Desde então, editou mais sete discos, mas foi com What Will We Be (2009) e especialmente com Mala (2013) que se afirmou como um dos mais talentosos escritores de canções deste início de século, muito à custa da mistura de folk e psicadelismo do seu hipnótico rendilhado de guitarra e voz. Pelo meio, colaborou com nomes como Antony and the Johnsons, Beck, Vashti Bunyan, Os Mutantes, Gilberto Gil ou Caetano Veloso. Em paralelo, dedica-se à arte e muitos dos seus desenhos e pinturas já estiveram expostos em locais como o San Francisco Museum of Modern Art ou o Los Angeles Museum of Contemporary Art, e foram no ano passado reunidos no livro I Left My Noodle on Ramen Street.
Avisaram-me à entrada de que está um pouco cansado, devido à sucessão de viagens para promoção do disco. Esta é a pior parte do trabalho de um músico?
Muito pelo contrário, é antes uma oportunidade para praticar a gratidão e para me lembrar o quão afortunado sou. E também uma oportunidade para esclarecer algumas questões, porque muitas vezes o que se escreve não corresponde totalmente à realidade.
Fica desapontado por isso?
A maior parte das vezes fico é desapontado comigo, porque as melhores respostas só vão surgir depois, quando a entrevista acabar e eu estivar a pensar nas perguntas que me fizeram. De certa forma posso descrever toda a minha vida assim, como um grande exercício de arrependimentos, embaraços e erros, quase como se fosse um mau dançarino que está continuamente a envergonhar-se a si próprio, com os seus movimentos. Metaforicamente, sinto-me sempre num palco barrado de manteiga. Mas a vida é feita de tentativas e erros, até que um dia finalmente acertamos nalguma coisa. É aquele cliché do work in progress, que nos dá uma grande sensação de alívio ao acordar, por nos tirar o peso de estarmos sempre a tentar ser perfeitos em tudo.
[youtube:PLxKHVMqMZqUTKI9rDrKzd7JztAwokMnA3]
E isso também se aplica à música e à arte, no geral?
A arte não é tão desafiadora a esse nível, porque é mais subjetiva. Aquilo que eu acho sublime pode ser considerado horrível por outra pessoa. A questão da perfeição tem muito mais que ver com a vida, com o dinheiro, com os nossos corpos, com as relações pessoais e todas essas coisas que a sociedade nos impõe que sejam perfeitas.
O tema Linda, que encerra o álbum, fala sobre isso, certo?
Sim, é uma reflexão sobre o modo como a sociedade estabelece os nossos valores, que hoje são muito mais baseados na presença online, se somos ou não googláveis. E se não o somos, então não temos valor. É claro que isso não é verdade, mas continua a ser uma pressão cada vez mais presente nas nossas vidas.
É uma canção que, a determinados momentos, me faz lembrar um pouco um fado...
Uau, muito obrigado, gosto muito de fado [responde em português]. É, acima de tudo, uma canção iluminada, porque nos apresenta uma pessoa livre, na sua subjetividade. Trata-se de uma personagem com consciência do mundo mas que prefere viver assim, só, sem qualquer tipo de culpa em relação a essa imposição da sociedade, de julgar o ser humano com base em algo totalmente insano, como o número de likes na porra do Facebook. Tem que ver com os nossos próprios princípios de felicidade. Todos nós somos únicos e especiais e isso não se pode avaliar através daquilo que transmitimos online, mas sim do que nos sai do coração. Linda tem consciência disto tudo, mas como optou por ser anónima, tem a possibilidade de ser livre para viver a vida como bem entende. A sua felicidade não depende da aprovação dos outros. É como se tivesse desistido de tudo e, ao fazê-lo, encontrou-se finalmente a ela própria.
[youtube:PLxKHVMqMZqUTKI9rDrKzd7JztAwokMnA3]
É isso que tenta fazer com a sua música e a sua arte?
Não sei, mas sei que me identifico com isso e vivo dessa forma. Todos os meus amigos têm filhos e família e eu continuo a viver sozinho, tal como a Linda. Gosto muito de estar com eles e brincar com as crianças, mas depois vou para casa e posso dar-me ao luxo de desaparecer. E foi isso que aconteceu quando escrevi esta música. Estava a conduzir através do deserto do Novo México e não havia ninguém a quem tivesse de ligar. Senti-me realmente livre e nem importava se sou ou não googlável, porque o telefone não existia, naquele local [risos]. No momento em que o liguei, essa sensação de liberdade desapareceu. Faço-o muitas vezes, mas devia fazê-lo mais. É um aparelho fascinante, pela forma como nos conecta e permite criar comunidades a milhares de quilómetros de distância, e isso é um verdadeiro milagre. Mas, por outro lado, é uma máquina consumista e egocêntrica.
Este é um álbum bastante imagético, que quase nos permite visualizar toda a ação. Soa também muito melancólico e meditativo, com uma certa dose de ironia. Concorda?
Sim, absolutamente. E não estou só a ser preguiçoso nas respostas ao concordar. Mas sim, sim e sim... Tentámos colocar este disco num lugar imaginário específico, que é um hotel decadente nos arredores de Tóquio, totalmente o oposto deste [a entrevista decorreu no Pestana Palace, em Lisboa]. O disco funciona um pouco como a banda sonora que se ouve no lobby e, ao mesmo tempo, vai retratando todos os dramas e pequenas histórias que por lá acontecem. Antes de começarmos o disco fizemos uma banda sonora para o filme Joshy. Como era a minha estreia no cinema, o realizador Jeff Baena aconselhou-me a não revelar muito da ação através da música. Foi uma maneira nova de encarar a composição que me permitiu voltar a trabalhar de um modo mais básico, como fazia no início de carreira. E quando começámos este disco quisemos voltar a fazê-lo, de modo a poder contar as histórias de uma forma simples e direta, como num filme.
Como é que se descreveria? Um músico que também pinta e desenha ou como um artista visual que às vezes faz uns discos?
Vejo-me como um artista... Qual é aquela palavra africana que vocês usam, aqui em Portugal, para definir um homem velho, em calão?
Cota?
Sim, isso mesmo. É assim que me vejo, como um artista cota...