A arte do concerto, por Maria João Pires
Será o último capítulo da ligação de mais de 20 anos de Maria João Pires à DG: a edição em box da totalidade das gravações de concertos para piano e orquestra que a pianista ali realizou, no que é também um gesto de congratulação da editora pelos 70 anos da artista (que fez em julho de 2014), analogamente ao que fizera com a edição das Complete Solo Recordings; e ao que fez a sua antiga editora Erato, reeditando gravações suas das décadas de 70 e 80.
Complete Concerto Recordings consta de cinco CD (mais livrete). Trata-se, no total, de dez concertos para piano, dos quais sete são de Mozart: os n.º 14, 17, 20, 21, 23, 26 e 27. Destes, à parte o n.º 23, dirigido por Frans Brüggen, todos são dirigidos por Claudio Abbado (curiosamente, ambos os maestros faleceram no ano passado), maestro com quem sempre teve uma relação especial. Juntam-se a Mozart os dois concertos de Chopin e o Concerto em lá m de Schumann, este de novo com Abbado, aqueles, respetivamente, com Emmanuel Krivine e André Previn.Ž
Ouvindo estes dez concertos (reiteradamente) de um trago, Maria João Pires assoma de modo evidente como uma mestre no desenrolar e desvelar dos dramas que se escondem por detrás das obras: os concertos de Mozart, antes de mais; o de Schumann, a largos trechos; os de Chopin, menos - graduação obedecendo tão-só às características inerentes às obras.
Mozart é um caso à parte, onde a perfeição da construção se alia à penetração de Maria João Pires, e essa conjugação coloca-nos perante verdadeiros dramas protagonizados por piano e orquestra, dramas não só de temas e motivos mas também de quem toma o comando, quem define ambientes.
Ouça-se como Maria João desfia uma imensa variedade de matizes na Exposição do Concerto 14, do mais delicado ao efervescente, ou como o seu jogo, ali e nos demais concertos, se acha sempre em íntima coerência, concordância com a relevância/densidade harmónica de dada passagem, bem como com a posição relativa no todo formal do andamento. Também notável é a forma como em múltiplas instâncias a personalidade de cada andamento é estabelecida ab initio na sua totalidade pela pianista: o gesto inicial já contém toda a intencionalidade que a seguir se revelará.
Noutras ocasiões (Concerto 17/ I), o piano "segue" as indicações deixadas pela orquestra, mas depois introduz ambiguidade entre o elemento lírico e o rítmico; no Andante desse Concerto (o mais extenso de quantos aqui gravados), o jogo da pianista parece evocar um soprano cantando uma peça de música sacra, na parte B introduzindo insuspeitas sombras; o Allegretto é um "festival" de exploração do colorido do piano.
No famoso Concerto 21, o piano assume dupla/tripla personalidade e impregna a orquestra com es- sa ambiguidade. O famosíssimo Andante central é também todo ele em duas caras, só no regresso da secção A se afirmando a pacificação; luz mesmo (surpresa?), só no andamento conclusivo.
O andamento I do Concerto 20 é um modelo da concatenação dos parceiros/oponentes (piano e orquestra) na definição dos ambientes sonoros, no III a serenidade sendo enfim atingida pela ironia. Já no Concerto 27, piano e orquestra entregam-se no Allegro conclusivo a uma súmula das características expostas nos - tão idílicos! - andamentos precedentes.
Mas como passar em branco o Concerto 23, no qual o inesgotável jorro melódico dos andamentos extremos é contrastado com um Adagio - trecho de que Maria João gosta especialmente - todo tristeza e solidão (e efémera consolação...)? Ou o de Schumann, onde o Finale aparece como uma catarse do Allegro inicial, separados por um maravilhoso, indescritível Intermezzo e, recorrentes, regressam "retratos" sonoros de Clara?
No Chopin, por fim, a pianista imprime a cada andamento de um e outro concertos (os pares homólogos são, aliás, próximos em carácter) a marca que lhes define a natureza: o equilíbrio de ímpeto e elegância sabiamente alternado (I); um mundo romântico de noite e de sonho, drama solitário e imagem idealizada do amor (II); o predomínio do brilho com evidente radicação nas danças tradicionais polacas, aqui e ali "perlado" de suavidades e subtilezas intrinsecamente chopinianas.
Único corpo estranho nesta edição: a inclusão da ária de concerto Ch"io mi scordi di te, de Mozat, por Christine Schäfer. Porquê?