A arte de filmar os corpos
Todos os dias assistimos ao modo formatado, simplista e emocionalmente grosseiro com que as telenovelas representam as relações humanas, em particular as relações amorosas. Ainda assim, a palavra "telenovela" é tratada como se fosse uma espécie de dado natural (e, mais do que isso, obrigatório) do mundo do audiovisual. Ao mesmo tempo, para muito boa gente, a palavra "melodrama" continua a suscitar uma reacção automática de suspeita, quando não de pura chacota. De facto, de David W. Griffith a Martin Scorsese, passando por David Lean, Vincente Minnelli ou Luchino Visconti, o melodrama é uma das mais nobres tradições do cinema, ancorada num princípio fundamental que persiste para além de todas as diferenças autorais ou de contexto. A saber: dar conta da pluralidade das emoções humanas e também dos seus conflitos, latentes ou explícitos, com a ordem social, política e simbólica.
Partir, de Catherine Corsini, é um filme que conduz essa atitude narrativa às suas mais extremas consequências. A paixão entre a senhora burguesa (Kristin Scott Thomas) e o trabalhador da construção civil (Sergi López) não se limita a desafiar o equilíbrio de um sistema de relações que envolve a estabilidade conjugal e os circuitos do dinheiro: é também uma crise existencial que se exprime através de sinais puramente físicos e, em boa verdade, fisiológicos. Percebemos, assim, que o olhar melodramático se enraíza sempre numa arte subtil de filmar os corpos. Escusado será dizer que essa é uma arte indissociável da metódica direcção dos actores. Sublinhemos, por isso, a notável presença de Kristin Scott Thomas: já vimos actrizes a receber Óscares por interpretações muito menos ricas e complexas.