A arte da propaganda
A cartilha dos ditadores é bem conhecida. Autoritarismo, repressão, controlo da comunicação social, propaganda, ameaça, violência, enfim, todo um mosaico de práticas que se repetem nas mais diversas geografias políticas. Personagens como Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, são manuais vivos do exemplar exercício da autocracia, incluindo pérolas como manter os seus próprios programas semanais de televisão, onde brindam os súbditos com requintadas efabulações da realidade.
Existe, contudo, uma elite do clube dos ditadores, que são aqueles que não se satisfazem com a imposição local da sua vontade, ansiando ir além em busca de um império, mais ou menos ideológico, que plasme a sua visão à escala continental. Esses, os imperadores do mal, foram mais longe do que nunca nos seus métodos, esticando a cartilha até aos limites. Vladimir Putin é o mais recente notável deste grupo restrito, e vê-se que leu atentamente o Mein Kampf de Adolf Hitler.
A encenação da passada sexta-feira, em que Putin aparece num estádio de Moscovo, a rebentar pelas costuras, remete-nos para os míticos comícios de Hitler. Naqueles eventos, como agora, o ditador desenvolvia toda uma retórica extremamente eficaz de convencimento e justificação das suas ambições expansionistas, apresentadas como uma questão de autodefesa e sobrevivência.
O evento de Moscovo destinava-se a celebrar o oitavo aniversário da anexação da Crimeia. Putin pretendeu mostrar ao mundo uma validação, em formato de multidão entusiástica, da invasão daquela península Ucraniana. Por maioria de razão, a invasão da Ucrânia, travestida de "operação militar especial", estaria legitimada aos olhos do mundo e do povo russo.
O número de apoiantes, segundo a polícia moscovita, foi de 200 mil pessoas. Como não há estádio tão grande - a lotação do Luzhniki é de 81 mil -, os restantes 120 mil estariam nas imediações. Bate certo! Entretanto, na boa tradição soviética, soube-se que muitos servidores públicos e estudantes terão recebido convincentes sugestões para aparecer por lá.
"Sabemos o que precisamos fazer, como fazê-lo e a que custo. E cumpriremos absolutamente todos os nossos planos". Putin não poderia ter sido mais claro. Há um plano, está em marcha e não vai parar. A escolha da música "Made in the USSR", do saudosista Oleg Gazmanov, ajudou à festa com o seu verso de abertura "Ucrânia e Crimeia, Bielorrússia e Moldávia, esse é o meu país". A semelhança com a construção do "espaço vital" de Hitler, uma espécie de máquina da História, deverá ser mais do que uma coincidência.
Há uns dias, Putin e Lukashenko mostraram-se às televisões no que parecia ser um concurso de mentiras, alternando as histórias sobre armas químicas com os planos de invasão da Bielorússia, sem qualquer exibição de provas. Agora, no estádio Luzhniki, o presidente russo aproveitou o palco para inventar um genocídio de pessoas de língua russa na Ucrânia, que naturalmente alega justificar a "operação especial". Seguindo a cartilha à risca, Putin apresentou-se alinhadíssimo com Hitler, quando em Mein Kampf escreveu "o uso correto da propaganda é uma verdadeira arte".
Benjamin Carter Hett, num estudo recente sobre a ascensão de Hitler ao poder, afirmou que "a chave para entender por que muitos alemães o apoiaram está na rejeição dos nazistas de um mundo racional e factual". O mundo que lhes foi vendido pela propaganda, digo eu. E deixo a pergunta: será que, no século XXI, da internet rápida e ubíqua, a propaganda ainda é o que era
Professor catedrático