Perante a estreia do maravilhoso The Quiet Girl, de Colm Bairéad, não podemos deixar de reavaliar a dimensão mediática dos prémios de cinema. Que é como quem diz: há prémios de apelo universal que têm manchetes garantidas, outros que ficam presos na sua dimensão "regional"....Observe-se o caso paralelo de The Quiet Girl e Belfast, o filme escrito e dirigido por Kenneth Branagh que lhe valeu o Óscar de Melhor Argumento Original atribuído em 2022, portanto referente à produção de 2021, ano da sua estreia nos EUA. Acontece que Belfast e The Quiet Girl foram lançados na Irlanda em 2022, tendo sido ambos nomeados para o prémio de Melhor Filme Irlandês desse ano. Quem ganhou? Pois bem, The Quiet Girl, vencendo num total de sete categorias, incluindo Melhor Realização e Melhor Atriz (Catherine Clinch). Entretanto, The Quiet Girl só foi lançado nos EUA em finais de 2022, tendo surgido, já este ano, entre os nomeados para o Óscar de Melhor Filme Internacional (categoria ganha pelo alemão A Oeste Nada de Novo)..Como é óbvio, não são os méritos de Belfast que estão em causa. O que desconcerta é o facto de um filme tão nomeado e reconhecido como The Quiet Girl (foi também eleito Melhor Filme Irlandês de 2022 pelos críticos de Dublin) acabar por não adquirir especial "balanço" promocional... Porquê? A resposta é cruel e linear: porque não ganhou um Óscar....Em tempos de muitas reflexões e especulações sobre os fatores que levam, ou não levam, os espectadores às salas escuras, eis mais um caso a ter em conta. Ou ainda: até que ponto a agitação informativa que acompanha os Óscares contribui para o afunilamento de toda uma temporada de cinema, "castigando" os filmes que não conseguem, pelo menos, uma estatueta dourada?.Reconheço também que tais reflexões podem atrair os esquematismos típicos de uma avaliação banalmente "futebolística" dos filmes. Não se trata, entenda-se, de ficar pela contabilidade dos golos ou dos prémios, correndo o risco de confundir a cinefilia com uma infantil estatística de prémios - como sempre, o que mais conta, e nem sempre suscita a maior atenção, são as componentes (realmente) cinematográficas de cada filme..Observemos a admirável Catherine Clinch (11 anos na altura da rodagem, em 2020). Ela distingue-se pela singularidade de uma presença que define uma verdadeira atriz. Porquê verdadeira? Porque não se limita a "ilustrar" uma personagem, antes a expõe como um misto de transparência e mistério, neste caso indissociável da quietude com que o título original a define - entre nós, The Quiet Girl surge com o subtítulo A Menina Silenciosa..A contenção de Clinch, tecida de silêncio e vulnerabilidade, decorre da convulsão em que descobrimos a sua personagem. Ela é Cáit, vive num ambiente rural em que a pobreza dos recursos se mistura com a indiferença dos pais pela sua larga prole. Quando a mãe está de novo grávida, Cáit é "despachada" para casa de uns primos distantes, um casal que a recebe de modo atencioso, mas contido, de tal modo parece impossível nascer qualquer tipo de diálogo no interior daquele sistema de tão frágeis relações... Dir-se-ia que a presença de Cáit vem mesmo reativar os restos de um luto doloroso, já que o casal perdeu um filho em condições trágicas....Não é fácil definir o clima dramático de um filme como The Quiet Girl, até porque o subtil argumento, também da responsabilidade do realizador, avança de modo paradoxal. Assim, os "não-acontecimentos" de muitas cenas - por exemplo, quando Cáit se limita a observar, em pose neutral, um jogo de cartas com alguns vizinhos - servem também para sentirmos que, a pouco e pouco, algo se altera na relação da "menina silenciosa" com aqueles que a acolheram, porventura gerando aquilo que será um novo espaço familiar..The Quiet Girl demarca-se, ponto por ponto, do paternalismo cego que, nos registos mais diversos, da comédia ao drama, representa a infância como uma curiosidade "pitoresca" e, nessa medida, desligada de qualquer con- texto verosímil e palpável. Será legítimo, então, inscrever o filme de Colm Bairéad (nascido em Dublin, em 1981) na tradição do realismo britânico? É uma hipótese sugestiva, mas discutível, quanto mais não seja porque deparamos com vários elementos figurativos e musicais que relativizam a pertença de The Quiet Girl a qualquer tradição..Observe-se, em particular, a suave erotização dos corpos e das cores favorecida pela direção fotográfica de Kate McCullough, ou o intimismo quase abstrato da música original de Stephen Rennicks que colaborou, por exemplo, na banda sonora de Quarto (2015), o filme de Lenny Abrahamson que valeu um Óscar a Brie Larson. São elementos de uma mise en scène que se demarca de qualquer catalogação dramática ou moral, ainda menos simbólica, das personagens, celebrando antes o seu caráter irredutível, porventura inde- cifrável. Nesta perspetiva, The Quiet Girl faz-nos redescobrir a nobreza de um cinema cujo classicismo permanece exemplarmente moderno..dnot@dn.pt