A arbitragem tributária e as estatísticas

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Há mais de onze anos que tenho trabalhado na arbitragem tributária, no seio do CAAD - com algumas intermitências ditadas por razões de saúde minha, e alguns hiatos correspondentes a períodos sem uma única nomeação. Tenho a minha própria estatística a apresentar: pelos meus cálculos fui nomeado para 110 tribunais, o que dá uma média de 10 casos por ano. Muito trabalho, com muita responsabilidade e muito melindre (e, no entanto, segundo os dados do CAAD, participei em somente 1,6% do total de processos).

Há uns dias foram circuladas nas redes sociais algumas estatísticas, de um estudo publicado pelo meu amigo Nuno Garoupa, e por curiosidade fui ver o estudo. Estranhei que a amostra escolhida tivesse deixado de fora os tribunais singulares, aliás os mais numerosos no CAAD (mais de 50%, nos dados oficiais), e se tivesse cingido a meio milhar de decisões colectivas - o que deve corresponder ao valor total de somente dois anos. Mesmo assim, amostra é amostra, interessa é que seja representativa.

Mais importante é que qualquer estudo estatístico nos domínios das decisões racionais está limitado por um pressuposto epistemológico básico: a estatística só é válida relativamente a fenómenos atípicos, ou seja, sem causalidade determinada. Ora as decisões racionais chamam-se assim porque precisamente não são atípicas - porque é possível discernir nelas uma causa, racional e teleológica.

Exemplifiquemos: porque é que (dados do estudo) 44% das decisões foram procedentes? Por acaso? Por escolha aleatória? Por captura dos árbitros? Não, porque, caso a caso, cada tribunal colectivo decidiu, nuns casos por unanimidade, noutros por maioria, mas sempre discutindo os méritos da causa, se o pedido inicial era, ou não, total ou parcialmente, procedente. Não passa pela cabeça de ninguém, presumo, que um árbitro tenha votado pela procedência do pedido até perfazer os 44%, e tenha passado a votar contra essa procedência a partir daquele valor; ou que, condoído pelos efeitos para a parte perdedora, lhe tenha ocorrido limitar ao valor de 44% os ganhos dos contribuintes, ou até tenha partilhado esta ideia com os demais árbitros, tentando convencê-los.

Não, os 44% não são expressão de um fenómeno atípico, bem pelo contrário: caso a caso, é possível ler online a fundamentação completa de cada decisão que contribui para aquele total, e também os votos de vencido que, se tivessem prevalecido, teriam evitado a formação daquele valor. São 44% de situações com causa conhecida, a inutilizarem completamente o valor estatístico, e a converterem este num valor enganador: um ingénuo pode pensar que os 44% foram decididos num lado qualquer e impostos aos árbitros, limitando a liberdade e a independência destes. Quando muito, os grandes números, o efeito "gaussiano" de uma massa de dados seriam capazes de nos conduzirem a outra conclusão, novamente não-estatística: a de que, no vastíssimo oceano das relações entre Fisco e particulares, aquela pequenina proporção que gera litígio e chega aos tribunais já traz com ela uma gravidade que não apenas motiva os particulares a reagirem, como perspectiva, para estes, uma probabilidade razoável de procedência: os 44% do estudo (ou até mais do que isso, segundo os dados oficiais).

Lidos apropriadamente, os dados estatísticos expostos no estudo são até simpáticos e lisonjeiros: confirmam o escrúpulo com que as decisões citam jurisprudência, confirmam a escassez de recurso das decisões arbitrais, sublinhando o seu carácter definitivo e tornando-as mais do que simples decisões de primeira instância, confirmam a ampla base de recrutamento dos árbitros, confirmam a relativa celeridade processual, confirmam até a predominância do sorteio e a relativa escassez da nomeação de árbitros pelas partes (5% nos dados oficiais).

Claro que o que há de mais positivo na experiência da arbitragem tributária escapa, pela sua índole, a um tratamento estatístico - logo, fica de fora do referido estudo -: o desempenho de funções adjudicativas por parte de uma comunidade com elevadas qualificações profissionais e académicas; a publicação de todas as decisões e votos de vencido, o que é inatacável de transparência e de responsabilização, e ao mesmo tempo permite a partilha de doutrina e jurisprudência com uma amplitude e actualidade inéditas entre nós, dinamizando o Direito Fiscal; o carácter público dos sorteios dos tribunais individuais e colectivos; a total e rigorosa sindicabilidade de todas as decisões tomadas pelos tribunais arbitrais pelas instâncias administrativas e constitucionais.

Estudos como este do Nuno Garoupa são de louvar, até porque constituem uma ocasião para reflectir e para melhorar. Têm o risco de assumirem uma forma analítica que pode induzir em erro olhos menos preparados, gerando vieses cognitivos (a tal consequência que deixa as estatísticas abaixo das "damned lies"); são estudos parcelares - sendo que, nalguns casos, estão disponíveis estatísticas fiáveis, que resgatarão estudos destes de extrapolações perigosas, mais a mais quando as extrapolações sejam desnecessárias.

Oiço dizer que este estudo, e estas estatísticas, geraram na opinião publicada comentários menos abonatórios para a arbitragem tributária - um preço aceitável, neste mundo de "soundbytes", por quem aceite trabalhar longe da ribalta. Quem quiser pode ver tudo e analisar tudo - tudo é público, acessível e transparente, caso a caso, e até número a número. Quem não quiser ver, há sempre o mundo alternativo da fantasia.

Prof. Catedrático da FDUL

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