A Anna Bolena de Elena Mosuc foi uma rainha até na voz
Foi uma noite quase perfeita no São Carlos, a da segunda récita da Anna Bolena. Talvez, para quem se lembre, a convocar a última Bolena no Teatro (1984), com, atentem: Ivo Vinco, Mara Zampieri e Fiorenza Cossotto! Diante de uma casa repleta, houve um elenco muito equilibrado, nivelado por cima e judiciosamente escolhido em função de cada papel, entre principais e comprimari; houve um encenador marcante das últimas duas décadas no São Carlos - Graham Vick; e houve a descoberta bem recente de Giampaolo Bisanti, um daqueles regentes que consegue transfigurar o som de uma orquestra, no caso a Sinfónica Portuguesa. E até houve, na plateia, Marcelo Rebelo de Sousa - no final, com o ministro da Cultura, foi aos bastidores cumprimentar o elenco e declarar-se maravilhado, e claro que não faltaram as fotos de grupo!
Foi interessante depararmos com uma faceta mais contida de Graham Vick, por se tratar aqui de um drama histórico específico, embora ficcionado à boa maneira do Romantismo. Mas o "Vick touch" notou-se logo na dramaturgia que acompanhou a abertura da ópera, com seis "modelos" desfilando à vez, representando as seis mulheres de Henrique. Depois, a enorme cabeça de "gesso" de olhos vendados, simbolizando a justiça; ou a gigantesca espada de Dâmocles que acompanha nomeadamente o grande terceto do 2.º ato; finalmente, a trouvaille das bodas reais (Henrique e Jane) do outro lado da fachada translúcida do Palácio de Whitehall, enquanto do lado de cá a omnipresente plataforma "se fez" o caminho do patíbulo sobre o qual uma Anna de cabelos devidamente cortados caminha resoluta.
Vocalmente, tirando alguma cautela inicial, esteve estupenda Elena Mosuc (Anna), apesar da "indisposição" inicialmente anunciada. Mas o que mais impressionou foi o modo como fundiu os requisitos vocais do papel (que são positivamente terríveis!) com a composição dramática da personagem! A Giovanna de Jennifer Holloway foi primeiro titubeante (agudos afogados, intonação não precisa), mas depois a voz "abriu" e arrancou uma prestação de excelente nível, culminando no soberbo dueto com Anna do 2.º ato. O Enrico de Burak Bilgili foi sempre imponente, vocal e visualmente; Lord Percy é bem um típico papel tenoril da sua época e Leonardo Cortellazzi vestiu-o com 100% de panache; Luís Rodrigues foi pungente na dignidade que emprestou a Lord Rochefort e Marco Alves dos Santos superou as medidas de Sir Hervey; por fim, um muito bom trouser role de Lilly Jorstad como Smeton. Coro não em tão alto nível, mas sem comprometer. Orquestra estupenda.