A anatomia de um sorriso
«Se o desejo é o limite, o que existe para além do desejo?», pergunta a voz profunda, quase hipnótica, de Lula Pena numa sequência de palavras criadas por Pedro Barateiro na narrativa Feitiço/Spell, a instalação vídeo da qual parte - e por isso com ela partilha o título - a exposição individual do artista plástico, patente na Galeria Filomena Soares, em Lisboa, até ao próximo sábado.
«Estou sempre entre dois planos, um mais intuitivo e outro mais de pesquisa do que me rodeia e do passado. Há uma espécie de vertigem sobre a consciência histórica e o tempo e o contexto em que vivemos. O consumo desenfreado num momento de crise faz refletir: será que precisamos mesmo disto tudo? De que precisamos de facto para viver? Quando um em cada cinco portugueses está no desemprego, temos de reequacionar tudo.» Que melhor forma de o fazer senão através da arte, «tão profundamente artificial, acessória e desnecessária»?
Pedro Barateiro, seja como for, não teria outra forma. A arte não foi escolha, foi devir. Nascido em Almada, há 34 anos, numa família de classe média, mãe cabeleireira, pai vendedor, sem qualquer ligação ao mundo das artes, nunca pôde fazer outra coisa senão criar, desenhar, pintar, escrever. Era o que o entretinha na mercearia dos avós, onde passava muito tempo quando era pequenino, e onde aprendeu também os outros, que iam entrando e saindo. «Não há um princípio, foi um processo natural, nunca tive outra vontade.» É com candura e olhos doces, como o tom de voz, que lembra a forma algo oblíqua como ao longo da vida sempre foi olhado. Mas ser visto como meio estranho talvez o tenha ajudado a revelar a subjetividade, interpreta hoje. E a devolver o olhar. «É o que fazem, no fundo, os artistas: devolver a si próprios e aos outros uma forma particular de olhar o mundo, com a qual as pessoas possam ou não identificar-se. O que foi acontecendo - e se revela no meu trabalho - foi isso.»
Isso que podemos ver nas imagens a preto e branco filmadas por ele, pelo fascínio que lhe provocaram quando se cruzou com elas e que de alguma forma o exortaram a juntá-las, a refleti-las, a criar com elas este filme-instalação-obra-de-arte-objeto-história-poema. Na Casa de Vidro , em São Paulo, obra da arquiteta brasileira Lina Bo Bardi (1951), Pedro interessou-se pela transparência do vidro que deixa ver, mas oculta, ambivalência em que se joga a sedução e o desejo. Através dos cenários depositados no Museu do Teatro de Lisboa, o artista entreviu o desgaste deste meio de comunicação e a aceleração do tempo. A representação da Tragédia Formiguinha da Boa Morte , pelos tchiloli , um grupo de teatro popular de São Tomé e Príncipe, revelou-lhe a reinterpretação que as culturas podem fazer umas das outras. De tudo isto nasceu Feitiço/Spell , narrativa de uma ida ao cinema, que é desconcertantemente sobre a sociedade atual e a arte e as pessoas e os objetos e os sentidos e os sentimentos e os olhares e as visibilidades e as invisibilidades e as próprias palavras e o próprio desejo. «Tens de me lembrar por que te quero. Tens de me lembrar por que te quero.»
Por que queremos nós as coisas e as pessoas? Será talvez esta a questão que sai da exposição do artista de Almada na galeria da Rua da Manutenção, n.º 80, em Xabregas. Daí Formas de Negociação , a instalação central, uma estrutura que representa uma linha de montagem que também pode ser um centro de distribuição, de caixas com um símbolo a lembrar o da Amazon. Desde que recebeu há uns anos a primeira entrega da gigante do comércio eletrónico que aquele «sorriso cínico» o provoca. «A caixa ficou no estúdio e o símbolo foi ganhando vida. Interessa-me a ideia de que o que alimenta a subjetividade do indivíduo, como os livros, distribuídos por uma multinacional que nada produz, crie por outro lado alienação, ao "forçá-lo" a consumir e a fazer parte de uma megaestrutura.»
A desconstrução deste símbolo que é quase um ícone começou em Tristes Selvagens/ Sad Savages , livro e exposição patentes ao público entre julho e setembro do ano passado na Parkour, em Lisboa, e continua nesta exposição, em Formas de Negociação e nas telas que a rodeiam, em que o sorriso foi invertido, entristecido. Ao lado, mais uma vez o limite da linguagem, em An Alphabet , um alfabeto inventado de chumaços - sim, aqueles que enchiam ombros de casacos e blusas dos anos oitenta -, servindo de legenda às imagens que acompanham, formando signos prontos a ser decifrados. Ou não.
Determinantes no olhar em construção de Pedro Barateiro a António Arroio, em Lisboa, a Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha e a Malmö Art Academy, na Suécia, onde fez o mestrado, mas também Almada e a sua paisagem de esquerda, industrial e pós-industrial, assim como o teatro, com o qual a cidade e Pedro partilham uma relação muito forte. Mas, por estranho que pareça, apesar de já ter corrido mundo em residências artísticas - Nova Iorque, Bristol, Paris - e exposições individuais e coletivas, nomeadamente em bienais tão importantes como a de Berlim, São Paulo ou Sydney, os seus conterrâneos nunca tiveram oportunidade de ver uma exposição sua. Não por falta de vontade do artista, mas «porque não aconteceu», explica, apaziguador: «As coisas vêm com o tempo, acontecem quando têm de acontecer, por isso não me entristece. Chegará o dia.»
Enquanto o dia não chega, além de Feitiço, Barateiro integra a exposição coletiva Arqueológica , no Matadero, em Madrid, até 9 de maio; o espaço ARTES, no Porto, e o Kettle's Yard, em Cambridge, Inglaterra, receberão uma exposição individual sua; será editada uma monografia sobre o seu trabalho; e passará uma temporada em residência artística em Antuérpia. Um privilégio, no olhar simples de Pedro Barateiro, que todos os dias pensa - e fala disso à namorada, Sofia, com quem tem o Jasmim, a sua «mais importante obra» - na imensa sorte que tem de poder viver daquilo que gosta: a arte.