A anatomia de Lisboa aos olhos do patologista que veio de Alicante
Aponta para a barriga e ri-se quando se fala da gastronomia portuguesa. Está em Portugal há quatro anos e há sete quilos. O espanhol António Beltran, investigador e médico de Anatomia Patológica na Fundação Champalimaud, não resiste às delícias da cozinha do lado de cá da Ibéria. "Haverá algo mais simples e mais saboroso do que um bacalhau à Gomes de Sá?", questiona. "A comida é espetacular. Os meus dois outros pratos preferidos são o cozido à portuguesa e o polvo à lagareiro", acrescenta. Seguindo a tradição espanhola, o pequeno-almoço são sempre torradas com azeite em vez de manteiga. "Trazia sempre azeite de Espanha, mas um dia acabou-se e comprei português", explica. Desde então nunca mais voltou a vir carregado com aceite de oliva. E os vinhos? "Estou apaixonado por eles", conta, sublinhando que tem de começar a fazer dieta, para que os quilos conquistados não continuem a afastar-se do número de anos que leva em Portugal.
Chegou a 1 de julho de 2013. Em agosto veio o resto da família, a mulher, o filho e filha. Ele prepara-se para entrar na Universidade. Ela é mais nova. Tem 10 anos e já fala melhor português do que castelhano. Sentem-se em casa e a ideia de regressar a Espanha não está nos planos próximos.
Portugal não era um país desconhecido para António, que nasceu em Alicante. Antes de virem de armas e bagagens já tinham sido várias as visitas. A primeira foi em 1985, em lua-de-mel. "Na verdade Portugal e Espanha são muito semelhantes. As diferenças entre os dois países não são maiores do que aquelas que existem entre as várias regiões de Espanha", sublinha. Há muito que as fronteiras já não existem e, para o cientista valenciano, cada vez funcionamos mais como um país só. "A integração económica que existe entre Portugal e Espanha não existe noutros países."
António Beltran estava radicado em Córdoba quando começou a pensar na hipótese de sair de Espanha. Tinha a ambição profissional de ter autonomia para montar e imprimir o seu cunho a um laboratório de anatomia patológica num centro médico e de investigação. Poderia ter ido para os EUA, mas, do ponto de vista profissional, o convite português era mais atrativo. A Champalimaud e Beltran não eram desconhecidos. O médico já colaborava com a instituição portuguesa à distância, a partir de Barcelona, quando ainda não havia departamento de Anatomia Patológica na fundação em Lisboa.
Agora está mais ligado ao lado clínico, de diagnóstico oncológico, mas continua a fazer investigação e a publicar livros e artigos. Precipitada sobre o Tejo - ou ao Tajo, o nome espanhol para o rio que nasce na serra de Albarracín - a Fundação Champalimaud deu-lhe a possibilidade de uma completa realização profissional.
Não encontra defeitos de maior em Portugal. Pelo contrário. Sobram-lhe os elogios. Só lamenta que os portugueses estejam "sempre com a mala preparada para sair". Para Beltran, a facilidade com que os portugueses voam para fora representa "uma grande perda de energia criativa" para o país.
Os pais de António eram comerciantes locais numa pequena aldeia na zona de Alicante. Foi na escola que descobriu o gosto pela biologia e pela química. Mais tarde, decidiu que queria estudar algo que lhe permitisse perceber o modo como funciona o corpo humano. Seguiu o conselho do irmão e foi para Medicina. A anatomia patológica surgiu mais tarde e a mensagem que deixa do ponto de vista médico é otimista. António está convencido de que na próxima década os cancros mais comuns, como o da mama ou o da próstata, serão transformados em doenças crónicas, como já acontece hoje com a sida. Talvez nessa altura ainda esteja em Lisboa. A festejar com um prato de bacalhau à Gomes de Sá.
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