A alma (e os cornos) das marionetas

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Num teatro lisboeta que parece atravessar uma fase de renascença pela qual todos naturalmente torcemos (o Trindade), passou há dias um espetáculo do século XIX, ou talvez XVIII, ou até mesmo XVII, desses que deviam ter um sabor a antigo já nos tempos antigos: um espetáculo de marionetas. Durante a Semana da Língua Italiana no Mundo, a convite da embaixada e do Instituto Italiano de Cultura, veio atuar a centenária companhia Carlo Colla e Filhos, últimos rebentos de uma velha família de comerciantes milaneses com o hobby das marionetas, os quais, tendo sido corridos de Milão depois do Congresso de Viena por alegado excesso de francofilia, tiveram de fazer das tripas coração e dos cordelinhos o seu sustento principal até hoje.

Fabricam bonecos idênticos aos que faziam nos séculos passados; aliás, velhos e novos ainda contracenam uns com os outros, que é como ver Errol Flynn e Johnny Depp no mesmo filme. São de madeira, têm cabelos verdadeiros (como o Senhor dos Passos) e passamanes comprados um pouco por todos os países do mundo onde a companhia se desloca em digressão. O Sr. Eugenio Monti Colla, titereiro-mor e encenador, pela primeira vez em Lisboa, garante que saqueou também as retrosarias da Baixa pombalina. Diz ainda que faz questão de fabricar bonecos um pouco retesados, sem procurar o esmero articulatório das marionetas mais sofisticadas. Os movimentos têm de ser parcos: mãos para cima e para baixo, boca aberta e fechada, pouco mais. A graciosidade está na mecânica, como dizia Kleist aconselhando os atores a perder a alma e a desligar o raciocínio.

Os Colla levam ao palco, em quadros de papel pintado, comédias ou tragédias de faca e alguidar e, obviamente, óperas. Ao Trindade trouxeram O Trovador, de Verdi. O melodrama assim encenado corre o risco de se tornar, de facto, a quinta-essência da ópera tal e qual a desejam os melómanos mais conservadores, que já não suportam as contaminações dos encenadores mais novos e acham que as vozes de hoje não prestam. No mais clássico trompe-l"oeil cenográfico, ficam assim gestos e movimentos reduzidos ao mínimo, mais o canto em playback de Callas e Di Stefano. Negócio fechado.

Mas mesmo sem pretender, como querem os génios à Kleist e os espectadores mais saudosistas ou talvez apenas preguiçosos, que os cantores de hoje se esforcem por se parecer com as marionetas, temos de reconhecer que estas têm outra mais-valia. Com esse ar de sonho vindo do longínquo país da infância, conseguem devolver a certos espetáculos a modernidade ancestral da fantasia infantil em que todo o heroísmo é ainda possível.

E O Trovador apresenta o triângulo arquetípico de tenor e soprano cujo amor é insidiado pelo barítono mau. Não é de excluir que numa próxima encenação - dessas que piscam o olho à atualidade mais atual, por exemplo no Metropolitan de Nova Iorque - este barítono possa vir a ter a cara, a barriga e a barba por fazer de Harvey Weinstein. A fantasia infantil da ópera põe as coisas de forma muito simples e clara: o que farias tu se...? Os heróis operáticos ainda aspiram a ser, como naquela canção de António Zambujo, o Zorro de espada e capote que marca um Z dentro do teu decote, para te salvar à beirinha do fim. Mais frequentemente abraçam o sacrifício supremo e não se salva ninguém, exceto a honra e a memória.

Já a realidade é um pouco mais propensa para pactuar com as adversidades, como se vê no caso Weinstein, não tanto pelo silêncio dos "sopranos", devido a múltiplas razões que vão da vergonha ao medo, como pelo silêncio dos "tenores", que, perdendo a alma e excedendo em raciocínio, sabiam e calavam, ainda que as vítimas fossem as namoradas. No fundo, já o patriarca Abraão, como recorda aquela página da Bíblia que escapou ao juiz Neto de Moura mas não escapou a Agustina Bessa-Luís, que a reescreveu magistralmente no seu Vale Abraão, "tinha um costume arcaico: o de usar a beleza da mulher, Sara, como solução das suas dificuldades. Para isso intitulava-a sua irmã, o que lhe deixava caminho para o desejo dos outros homens".

jornalista italiano freelancer

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