A agenda Merkel
Depois do G7, o G20. Hamburgo recebe o grupo no final desta semana e a tendência vai manter-se: os EUA estarão no centro dos debates e isolados em muitos aspetos. Esta é, pelo menos, a estratégia do lado europeu, liderada por Angela Merkel, a anfitriã do evento. Os últimos dias mostraram como os restantes europeus do G20 estão confortáveis com a sua liderança. Paolo Gentiloni disse "estar em boas mãos com a chanceler", Emmanuel Macron "acredita no talento diplomático" de Merkel, e o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, confirmou ir "a Europa falar a uma só voz" nos dossiês centrais da cimeira: comércio livre, alterações climáticas e imigração global.
Pé ante pé, Merkel vai fazendo o seu caminho na Europa com uma estratégia diplomática mais inteligente e alvo de muito menor hostilidade do que há um par de anos. Uma parte do centro-esquerda alemão tem até manifestado em sondagens o seu apreço por Merkel, pela abertura aos refugiados e luta contra as alterações climáticas, cardápio a que se juntará a recente aprovação no Bundestag do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Depois de ter passado uma vida do outro lado da barricada, certo é que o debate saltou para a agenda política pela abertura de Merkel expressa há dias numa conferência. Mesmo tendo votado contra, a chanceler deu liberdade de voto aos deputados da CDU e evitou que um tema apoiado por mais de 75% dos alemães se tornasse central nas legislativas de setembro e um elemento de bloqueio às previsíveis negociações com três partidos incontornáveis a uma nova coligação (SPD, FDP e Verdes). Desta forma, centra praticamente toda a campanha nas qualidades de liderança que a distinguem de Schulz, posicionando-se no centro político para tentar chegar à maioria. A confortável margem conquistada nas sondagens parece validar a estratégia.
Mas se Merkel vai estabilizando um perfil de certa forma consensual na Alemanha e em muitos países da UE, Trump chega a Hamburgo mergulhado nos mil casos que protagoniza de manhã à noite. Não vale a pena discorrer sobre eles, até porque o nível que atingem é tão baixo que já só é possível sentir vergonha alheia pelo presidente americano. No entanto, vale a pena lembrar o que disse o general McMaster, conselheiro de segurança nacional, quando lhe perguntaram que agenda levará Trump ao G20. A resposta foi esta: "Não temos uma agenda específica, será sobre tudo o que o presidente quiser falar." Estamos, portanto, assim: o profissionalismo da Casa Branca bateu de tal maneira no fundo que já não sabemos bem se estamos a falar de gente adulta ou de um bando de meninos mimados. Como disse Merkel após a visita à NATO do presidente americano, "os EUA não são mais um parceiro confiável". As relações germano-americanas passaram por várias fases nestas décadas de pós-guerra, chegaram mesmo a atingir um nível extremo de animosidade durante a guerra do Iraque em 2003 (Stephen Szabo, em Parting Ways, trabalha esta história com mestria), mas a clivagem de hoje não tem paralelo. É ideologicamente antagónica, estrategicamente oposta, pessoalmente incompatível.
Estamos a atravessar uma fase nova no Ocidente, em cima dos patamares de incerteza entretanto levantados pelo brexit, o transacionismo de Trump, o iliberalismo do Leste e o nacionalismo balcânico. A existência de uma saudável e convergente relação entre Berlim e Washington tem sido um pilar de estabilidade das democracias liberais. Ora, tudo isto obriga a ser bem mais afirmativo na sua defesa. Por isso é positiva a convergência europeia no G20, não deixando cair a agenda das alterações climáticas, do comércio livre e da abertura à imigração. Estes três eixos têm muito por onde melhorar, precisam de compromissos com países fora da Europa, mas o pior que podia acontecer aos europeus era caírem na deriva toys "r" us que impera em Washington.
Merkel percebeu o dilema do presente e tem feito tudo para manter Pequim e Nova Deli no Acordo de Paris. A Comissão Europeia está prestes a fechar o acordo de livre comércio com o Japão e o Mercosul. E, mais uma vez, é Berlim que está a olhar para África como mais nenhum outro país europeu o está a fazer: como o continente do futuro, quer em oportunidades, demografia e consumo, mas também nos enormes riscos e que podem facilmente causar uma imensa vaga migratória para a Europa através dos efeitos extremos das alterações climáticas, da pobreza e dos conflitos. Com um aumento de 20% no orçamento para ajuda ao desenvolvimento, a Alemanha quer liderar uma nova relação entre África e Europa, atraindo investimento, gerando emprego, monitorizando gastos, responsabilizando decisores, estabilizando sociedades e reduzindo vagas de imigração forçada. Para já, estão no radar cinco países (Costa do Marfim, Senegal, Ruanda, Marrocos e Tunísia), mas, se pensarmos que nos próximos 30 anos só a população jovem africana passará de 230 milhões para 452 milhões, percebemos o potencial de fazer tudo a tempo e o risco de não fazer nada.
Portugal tem, sobre isto, dois desafios fundamentais. Por um lado, assiste à dissonância crescente entre os líderes das organizações estruturantes da sua democracia: a Alemanha na UE e os EUA na NATO. É inevitável que tenha de fazer escolhas e ferir alinhamentos. Por outro, vê Berlim com uma política africana estruturada e imponente. O melhor que tem a fazer é acompanhá-la, trazendo ao roteiro toda a experiência e credibilidade acumuladas na região. A inércia pode ser a pior das conselheiras.