Henry Kissinger, antigo secretário de Estado americano e por muitos considerado o guru da geopolítica, fez 100 anos. Para assinalar a data, o DN publicou um excerto do seu mais recente livro, editado agora em Portugal pela D. Quixote. Liderança - Seis Estudos sobre Estratégia Mundial dá-nos a conhecer os percursos de Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Richard Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher. Kissinger lidou com todos eles..Em 1967, Richard Nixon, ao tempo sem cargo oficial, publicou um artigo precursor na Foreign Affairs levantando a questão da impossibilidade de a China ser "mantida para sempre fora da família de nações". A sua tese vinha enquadrada em grandes termos de estratégia, e sublinhava os benefícios para a paz global que resultariam de a China cortar o seu apoio a levantamentos revolucionários em todo o mundo, e de ser um dia trazida para uma relação diplomática com o Ocidente. O ensaio de Nixon não definia, porém, qualquer via concreta para alcançar essa eventual abertura diplomática..Dois anos mais tarde, já presidente, a abertura foi posta em prática. A China vivia ao tempo as convulsões da Revolução Cultural. Como parte de um grandioso programa de purificação ideológica, Mao Tsé-Tung chamara os embaixadores de todos os países, exceto o do Egito. (Embora num punhado de países, como a Polónia, os diplomatas chineses de grau inferior a embaixador permanecessem.) A primeira abordagem partiu do próprio Nixon. Como vimos, durante a visita à Roménia, em 1969, comunicara a intenção de contactar com os chineses através de Ceausescu, que indiciara que transmitiria a sugestão. Não tinha havido resposta, provavelmente porque os líderes chineses receavam a penetração soviética naquele seu satélite, ainda que com as pretensões autonomistas da Roménia..Durante a Conferência de Genebra de 1954, no fim do esforço bélico da França para manter o Vietname, a embaixada de Varsóvia fora designada como ponto de contacto entre Washington e Pequim. E, na realidade, foram ali conduzidos 162 encontros a nível de embaixador. Terminaram com a rejeição por parte de cada lado das pré-condições do outro: os EUA a recusarem o regresso incondicional de Taiwan à China; Pequim a recusar dar garantias de prossecução do seu objetivo exclusivamente por meios pacíficos. Nos últimos anos nem mesmo encontros desses, pró-forma, haviam tido lugar. Mas em janeiro de 1970 decidimos ativar o canal. Dei instruções ao embaixador na Polónia, Walter Stoessel, para que comunicasse a nossa proposta de diálogo a um diplomata chinês, na próxima ocasião social em que coincidissem. Julgando tratar-se de uma iniciativa privada minha, Stoessel ignorou-a - numa atitude demonstrativa das rivalidades entre Casa Branca e Departamento de Estado..Chamado para consultas, Stoessel viu-se convocado para o Gabinete Oval, onde o presidente lhe comunicou pessoalmente as suas instruções, após o que Stoessel comunicou a proposta numa ocasião social na embaixada da Jugoslávia, onde um diplomata chinês começou por fugir dele, mas, quando por fim foi encurralado, recebeu a nossa oferta..Duas semanas depois, o embaixador chinês na Polónia apareceu inesperadamente na embaixada americana com instruções para iniciar o diálogo. Realizaram-se quatro encontros. Do lado americano, depressa os progressos esbarraram com o sistema oficial de autorizações, primeiro no seio do governo, e depois no Congresso, o que, a certa altura levou Nixon a exclamar que "vão matar este bebé antes mesmo de nascer"..Em qualquer caso, pouco depois da incursão no Camboja, em maio de 1970, os chineses quebraram o canal de Varsóvia em protesto. Todavia, em outubro desse ano, Nixon reafirmou o seu interesse no estabelecimento de contatos diretos a Yahya Khan, presidente do Paquistão, que o viera visitar à Casa Branca aquando de uma visita às Nações Unidas..Dessa vez, Nixon recebeu uma resposta direta do primeiro-ministro Zhou Enlai, que escrevia em nome de Mao. No dia 9 de dezembro de 1970, em quatro frases enigmáticas, Zhou promoveu a conversa de Nixon com Yahia Khan ao estatuto de mensagem oficial, classificando-a como a primeira vez em que os Estados Unidos tinham comunicado com a China a nível presidencial, "de um líder através de um líder para um líder"..Zhou comunicou que a China estava disposta a negociar com os Estados Unidos o regresso de Taiwan à pátria-mãe. De forma codificada, respondemos que para que o diálogo avançasse, cada parte deveria ter a liberdade de levantar as questões de seu interesse. O subsequente vaivém de mensagens realizou-se sem cabeçalho ou assinatura para minimizar o risco de fuga de informação, de reação de Moscovo e de perplexidade no resto do mundo. Num recuo a antigos métodos diplomáticos, as mensagens eram entregues por mensageiro de Washington a Islamabad, capital do Paquistão, e dali, entregues por paquistaneses a Pequim - com as respostas chinesas a seguirem o caminho inverso..O ritmo deste intercâmbio foi atrasado pela determinação de cada uma das partes de não deixar que a outra explorasse o comum desejo de avançar. Consequentemente, o diálogo entre Nixon e Mao, realizado ao longo de um período de muitas semanas através dos contatos entre mim e Zhou, limitou-se a pontos processuais e de agenda, sempre transmitidos em poucas palavras. Um erro de cálculo soviético ajudaria a resolver a questão..Durante a primavera de 1971, os nossos contatos secretos começaram a dar fruto, tendo sido combinada uma visita minha a Pequim. Estávamos a negociar simultaneamente com ambos os adversários em diferentes cimeiras. Nixon resolveu o problema tático com instruções para que fossem feitas propostas a ambos, a começar pelos soviéticos..Se ambas fossem aceites, tratá-las-íamos pela ordem da chegada das respostas. Submeti a nossa proposta para uma cimeira com Moscovo a Dobrynin, em Camp David, em junho de 1971. Os soviéticos resolveram-nos os problemas ao sujeitarem a aceitação ao nosso apoio nas negociações com a República Federal da Alemanha, a Grã-Bretanha e a França para um novo acordo sobre Berlim. Ao contrário, durante a minha visita secreta a Pequim em julho de 1971, Zhou Enlai propôs uma visita de Nixon à China sem quaisquer pré-condições. Três dias depois do meu regresso, Nixon aceitou o convite de Pequim. Passado um mês, Dobrynin transmitiu um convite incondicional para uma visita a Moscovo. Como planeado, agendámo-la para três meses após a prevista visita a Pequim..A minha viagem secreta a Pequim foi feita mediante o agendamento de uma visita oficial a Vietname, Tailândia e Paquistão. Uma vez chegado a Islamabad, o período para o lance final foi conseguido com o anúncio de uma indisposição minha, que explicaria a subsequente ausência de dois dias como período de convalescença numas termas de montanha. O processo todo - desde a conversa de Nixon com Yahya Khan, em 25 de outubro de 1970, até à minha chegada a Pequim, em 9 de julho de 1971 - levou oito meses. A viagem propriamente dita, desde a partida de Washington até à chegada a Pequim, levou oito dias. Foram passadas em Pequim exatamente 48 horas..Como tirar o melhor proveito desse curto período? Para as conversações a nível de embaixador, em Varsóvia, o governo americano tinha uma agenda bem definida. Os pontos incluíam Taiwan, reivindicações financeiras e de ativos resultantes da expropriação de propriedade americana, prisioneiros, e navegação no mar do Sul da China. Mas Nixon e eu concluímos que estes tópicos e outros semelhantes conduziriam provavelmente a atalhos técnicos ou atoleiros ideológicos que poderiam impedir o progresso para o objetivo de uma relação continuada. Recebi instruções para exprimir a disponibilidade para discutir Taiwan, mas apenas e especificamente em ligação com a relação sino-americana para pôr fim à guerra do Vietname..A contribuir para colocar a tónica na geopolítica, Nixon fez um discurso em Kansas City, no Missouri, em 6 de julho de 1971, enquanto eu ia a caminho. Explicando a sua visão de ordem mundial baseada em equilíbrio entre grandes potências, e omitindo qualquer referência a Taiwan, disse:."Em vez de termos a América a ser número um no mundo de um ponto de vista económico, a potência mundial proeminente, e em vez de termos apenas duas superpotências quando pensamos em termos económicos e de potencialidade económica, existem (...) cinco grandes superpotências económicas: os Estados Unidos, a Europa Ocidental, a União Soviética, a China Continental, e, evidentemente, o Japão.".O único ponto de acordo resultante da minha visita secreta foi o convite a Nixon para visitar a China, mas ambos os lados enunciaram os termos gerais de base para futuras conversações. Eu fiz desenvolvimentos com base no discurso de Nixon; Zhou iniciou uma conversa com uma citação de Mao: "Há grande desordem sob os céus, mas a situação é excelente.".Durante a minha visita de outubro de 1971, três meses depois, houve diálogo diplomático mais concreto. O objetivo era preparar a cimeira e elaborar um comunicado para a anunciar. O intervalo de quatro meses que mediou entre esta segunda visita e a cimeira de Nixon resultou da nossa convicção de que não se deveria correr o risco de um impasse entre Nixon e Mao no seu primeiro encontro frente a frente, durante o qual as conversações deveriam ter em atenção os condicionalismos internos de cada lado e o facto de os media estarem à espera lá fora..Eu trouxera comigo um comunicado-padrão declarando as nossas intenções gerais, mas sem nada de concreto. Zhou regressou na manhã seguinte com uma mensagem explícita do chefe de Estado: tendo evitado durante anos qualquer contacto de alto nível, os nossos países não deviam pretender agora que se aproximavam na melhor das harmonias. Mao sugeria que o comunicado contivesse uma declaração completa dos nossos pontos concretos de discórdia, juntamente com a declaração de claros pontos de acordo. Em tal contexto, o comunicado suscitaria muito maior atenção aos pontos de acordo do que o cliché de uma declaração de boa vontade. A elaboração de uma declaração conjunta sobre o futuro de Taiwan foi deixada para os protagonistas da cimeira próxima, mas, a título de advertência à União Soviética, Zhou e eu conseguimos concertar-nos numa declaração conjunta de oposição a uma hegemonia na Ásia..O súbito empenho de Pequim terá resultado indubitavelmente da pressão que era exercida pelas mais de quarenta divisões blindadas soviéticas estacionadas ao longo das fronteiras da Manchúria e Xinjiang. A cooperação de alto nível com a China para o estabelecimento de um equilíbrio mundial seria agora expressamente anunciada, e transformaria a natureza da Guerra Fria..Não havia precedente para o comunicado pré-cimeira que foi divulgado, e nem ele viria a ter sucessor comparável. Tal como fora decidido, as duas partes exprimiam uma longa lista das respetivas divergências, articulada com algumas declarações de convergência. Zhou e eu assumimos a responsabilidade das formulações de cada um dos lados. Como nenhum de nós pediu para ter veto sobre a outra parte, essa abordagem concedeu-nos uma oportunidade para enunciar explicitamente a posição americana como conteúdo de um comunicado conjunto. O rascunho foi, então, submetido a aprovação de Nixon e Mao..Na cimeira, Mao só viria a disponibilizar-se para quarenta minutos de encontro, devido - como mais tarde fomos informados por médicos chineses - a uma grave crise médica uma semana antes. Mas já tinha aprovado o rascunho de outubro do comunicado, que enunciava integralmente a posição americana sobre Taiwan e outras questões. A essa luz, a declaração que depois resolveu fazer no seu breve encontro com Nixon revestia especial significado: a China não queria Taiwan imediatamente, explicou ele, porque os taiwaneses eram "um bando de contrarrevolucionários... Passamos bem sem eles por enquanto, e veremos daqui a cem anos"..Retirar, durante a cimeira, toda a urgência àquela questão que havia muito impedia negociações entre os dois países tornou possível uma declaração que enunciava o princípio que nortearia as relações dos EUA com a China ao longo dos 50 anos subsequentes: "Os Estados Unidos reconhecem que todos os chineses de ambos os lados do Estreito de Taiwan defendem que existe apenas uma China e que Taiwan é parte da China. O governo dos Estados Unidos não contesta esta posição." Em seguimento a uma proposta oficial feita por Nixon durante a cimeira, esta formulação foi adicionada ao que hoje chamamos Comunicado de Xangai, publicado no fim da sua visita..Não foi Nixon nem fui eu a inventar esta linguagem; na verdade, colhemo-la numa declaração redigida durante a administração Eisenhower de preparação para umas negociações com Pequim que nunca vieram a acontecer. A declaração tinha a virtude de enunciar rigorosamente os objetivos expressos tanto de Taipé como de Pequim. Abandonando o apoio dos EUA a uma solução de "Duas Chinas", o comunicado mantinha a ambiguidade relativamente a qual das Chinas cumpriria os anseios postulados do povo chinês..Passados poucos dias, Zhou aceitou a nossa formulação. A sua ambiguidade libertava ambos os lados para a condução de uma política de cooperação estratégica que retiraria à União Soviética o papel decisivo no equilíbrio internacional. O comunicado trazia implícito que Taiwan seria tratada como entidade autónoma durante um futuro previsível. A China mantinha-se fiel ao seu princípio de Uma China, enquanto os EUA se abstinham de proclamações em prol de um desenlace de Duas Chinas, e nenhum dos lados procurava impor as respetivas preferências. A insistência dos EUA numa solução pacífica foi enunciada explicitamente na secção unilateral do comunicado. Dois comunicados adicionais acordados durante as administrações Carter e Reagan exploraram esse mesmo entendimento. Juntos, eles têm sido a base das relações entre ambos os lados do Estreito de Taiwan. Na eventualidade de alguma das partes as contestar, os riscos de confronto militar aumentariam significativamente..Ao longo de vinte anos subsequentes à visita de Nixon, Estados Unidos e China conduziram uma abrangente política de cooperação para conter o poder soviético. Essa cooperação chegou a abranger o domínio dos serviços secretos, embora em termos limitados. Demonstrando o grau de empenho da China durante uma visita posterior em fevereiro de 1973, Mao instou-me a que equilibrasse o tempo que dedicava à China com tempo dedicado ao Japão, não fossem os japoneses sentir-se negligenciados, e aplicarem-se menos na defesa comum contra a União Soviética: "Em vez de um Japão com relações mais próximas com a União Soviética", disse Mao, "preferiríamos que melhorasse as relações convosco"..Um mês depois, o primeiro-ministro de Singapura, Lee Kuan Yew, aproveitou a oportunidade de uma conferência que fez na Universidade Lehigh, na Pensilvânia, para uma reflexão sobre a importância da diplomacia da Administração Nixon:."Vivemos em tempos conturbados. Há bastante tempo já que o mundo não testemunhava mudanças tão drásticas nas relações entre grandes potências como as dos últimos dois anos. Vamos testemunhando alterações na balança de poder à medida que os pesos relativos mudam. E as grandes potências estão a aprender a viver em paz umas com as outras...".As velhas divisões fixas da Guerra Fria pareciam fluidas e nebulosas. Washington mudara do confronto para a negociação tanto com Pequim como com Moscovo. Fossem quais fossem as respetivas razões, ambas as potências comunistas queriam que houvesse uma desescalada da guerra no Vietname e fosse permitido à América retirar honrosamente... A China, por seu lado, dá mostras de maior cordialidade em relação a América e Japão capitalistas do que em relação à Rússia comunista....As divisões ideológicas parecem ser menos relevantes. Por enquanto, os interesses nacionais parecem ser a linha orientadora mais fiável para as iniciativas e políticas dos governos. Nixon não poderia ter desejado melhor elogio do que este à sua política externa. Mao morreu em 1976. Dois anos mais tarde, Deng Xiaoping regressou da sua segunda purga e implementou a política reformista que lançara em 1974, depois da primeira purga. Desde então até ao advento da Administração Trump, em 2017, a política chinesa da América assentou nos princípios fundamentalmente apartidários definidos durante este período..Hoje, a China tornou-se um formidável concorrente económico e tecnológico dos Estados Unidos. Nas circunstâncias vigentes, é por vezes suscitada a questão de saber se Nixon, caso fosse ainda vivo, se arrependeria da abertura à China. Mas esse era um problema que ele já antevia. O seu discurso de julho de 1971 em Kansas City revela uma consciência aguda do potencial de impacto da China no sistema internacional: O próprio êxito da nossa política de pôr fim ao isolamento da China Continental significará uma enorme escalada da sua concorrência económica, não só para nós, mas para outros países do mundo... 800 milhões de chineses, abertos ao mundo, com toda a comunicação e intercâmbio de ideias que inevitavelmente ocorrerão em consequência dessa abertura, tornar-se-ão no mundo uma força económica de enorme potencial..É famosa a frase do primeiro-ministro britânico Palmerston: "Não temos aliados eternos, e não temos inimigos perpétuos. Os nossos interesses são eternos e perpétuos, e é esses interesses que é nosso dever prosseguir." Estabelecer uma parceria com a China para contrabalançar a União Soviética era do superior interesse americano durante a Guerra Fria; hoje, qualquer política dos EUA relativa à China tem de estar enquadrada no contexto da sua vasta economia - comparável à dos Estados Unidos -, do seu crescente poderio militar, e da competência diplomática colhida em milhares de anos de preservação de uma cultura diferenciadora. Como todas os êxitos estratégicos, a abertura à China foi, portanto, não apenas a resposta a problemas contemporâneos, mas também um "bilhete de entrada" para futuros desafios. O mais pronunciado de todos eles é este: à medida que a moderna tecnologia continuava a aumentar a capacidade destrutiva de uma guerra nuclear através do advento de uma variedade de armas de alta tecnologia e de progressos radicais na inteligência artificial, China, Rússia e Estados Unidos começaram a modernizar os respetivos arsenais militares. Com armas que adquiriram a capacidade de procurar os próprios objetivos e de aprender com a experiência, e com armas cibernéticas capazes de impedir a rápida identificação da sua origem, é imperativo estabelecer paralelamente com o desenvolvimento tecnológico um diálogo que garanta a estabilidade da ordem mundial - e talvez mesmo a sobrevivência da civilização humana..Henry Kissinger Liderança - Seis Estudos sobre Estratégia Mundial D. Quixote 560 páginas.Artigo publicado originalmente no DN do dia 27 de maio de 2023.