737 MAX volta a voar. Ações disparam, familiares das vítimas criticam
Quase dois anos depois de dois acidentes com o novo Boeing 737 MAX, que deixaram 346 mortos no espaço de cinco meses, os reguladores dos Estados Unidos autorizaram o regresso aos céus. A notícia foi muito bem recebida em bolsa, com uma valorização de 3%, mas causou críticas entre os familiares das vítimas, que não acreditam na agência reguladora dos EUA.
A Agência Federal de Aviação americana (FAA, na sigla em inglês) informou, em comunicado, que ainda terá de aprovar a formação necessária para os pilotos antes de qualquer voo do 737 MAX sobre o espaço aéreo dos Estados Unidos.
No resto do mundo, a aeronave está dependente de que as autoridades do setor aéreo de outros países realizem as suas próprias certificações.
A principal mudança do 737 MAX é o software de controlo de voo, MCAS, que os pilotos dos voos acidentados da Lion Air em 29 de outubro de 2018 e da Ethiopian Airlines em 10 de março de 2019 não conseguiram dominar.
Segundo o diretor da FAA, Steve Dickson, numa entrevista à CNBC, aquelas tragédias aéreas não poderão ser replicadas porque que as alterações "tornam impossível que os aviões tenham o mesmo tipo de acidentes".
"Nunca nos guiámos pelo tempo. Seguimos um processo metódico e deliberado", acrescentou Dickson, ele próprio um piloto de testes do MAX em setembro.
"Foi um longo e exaustivo caminho até esta decisão", disse Dickson, num vídeo que acompanha o anúncio, e num sinal de confiança, disse que estaria "100% confortável" com o facto de a sua família voar num aparelho daqueles.
Os familiares dos passageiros que morreram nos acidentes criticaram a decisão, segundo um comunicado da Clifford Law Offices, o escritório de advocacia que os representa.
"O forte sigilo da FAA significa que não podemos acreditar que o Boeing 737 MAX seja seguro", disse Michael Stumo, cuja filha morreu no acidente da Ethiopian Airlines.
"Ainda há muitos problemas a resolver antes de poder voar novamente", disse Brittney Riffel à AFP no início desta semana. Riffel estava grávida de sete meses quando o Boeing 737 MAX com o seu marido a bordo caiu num campo na Etiópia. Agora, o regresso iminente do avião aos céus preocupa-a: "Sinto que estão novamente a cortar caminho."
Riffel, que também perdeu o seu cunhado no acidente, está entre os cerca de 140 familiares das vítimas do malfadado voo da Ethiopian Airlines que agora processa a Boeing por causa da calamidade, o segundo de dois acidentes que juntos mataram 346 pessoas. "Não somos apenas familiares enlutados, mas estamos preocupados como passageiros", disse Riffel. "Preocupamo-nos para que isto não aconteça a mais ninguém."
A Boeing enfrenta uma série de investigações e processos relacionados com os acidentes. As inspeções subsequentes levantaram questões sobre a razão pela qual a Boeing e a FAA não imobilizaram o modelo após o acidente do Lion Air.
Um relatório publicado em setembro por um painel da Câmara de Representantes classificou os acidentes da Lion Air e da Ethiopian Airlines como "o culminar horrível de uma série de suposições técnicas erradas dos engenheiros da Boeing, uma falta de transparência por parte da gerência da Boeing e uma supervisão extremamente insuficiente por parte da FAA".
Houve revelações sobre funcionários da Boeing que se queixaram de uma abordagem negligente à segurança e de mensagens internas demolidoras entre funcionários da empresa sobre reguladores mal intencionados, incluindo uma missiva de 2017 que dizia que o MAX foi "concebido por palhaços que, por sua vez, são supervisionados por macacos".
Além da Boeing, também o regulador enfrenta a justiça. O grupo sem fins lucrativos FlyersRights está a processar a FAA por não divulgarem documentos sobre a certificação, os quais permitiriam "a peritos independentes e o público examinarem a base sobre a qual a FAA pretende levantar o avião da pista", diz o grupo
Além da formação dos pilotos, as companhias aéreas também terão de fazer trabalhos de manutenção nos aviões estacionados nas pistas dos aeroportos por mais de 20 meses.
A American Airlines já programou um voo para o fim de dezembro.
"Instaurámos processos rigorosos para garantir a segurança de cada aeronave e que os nossos pilotos, assistentes de voo, colegas e clientes tenham confiança no regresso do 737 MAX", disseram os executivos da companhia numa carta dirigida aos funcionários.
Os aparelhos armazenados na Boeing terão de ser examinados por um inspetor da FAA antes de serem enviados para os clientes.
A agência europeia de aviação informou que antes do final de 2020 não deve haver permissão para o 737 MAX. Já a congénere canadiana disse que "muito em breve" completará o próprio processo de validação e que solicitará mais mudanças.
Para o administrador executivo da Boeing, David Calhoun, a decisão da FAA marcou "uma etapa importante".
"Estes acontecimentos e as lições que aprendemos remodelaram o nosso negócio, que se concentrou mais nos valores fundamentais de segurança, qualidade e integridade", acrescentou Calhoun.
A Boeing estima que a crise do 737 MAX custou à empresa uns 20 mil milhões de dólares entre custos diretos e indiretos associados com a produção e a sua suspensão durante vários meses, e as indemnizações às companhias aéreas.
O 737 MAX vai regressar num momento em que o setor se encontra muito afetado pela pandemia. A Boeing perdeu 393 pedidos nos primeiros dez meses do ano.
Em contrapartida, a construtora aeronáutica com sede em Seattle tem atualmente 450 aeronaves em stock, pelo que se se tiver clientes poderá equilibrar as contas.
A Boeing e as companhias aéreas suas clientes podem vir a ter uma tarefa difícil em convencer os passageiros sobre a segurança de um modelo que caiu duas vezes em cinco meses, tendo deixado 346 mortos.
"Muitos clientes inicialmente hesitarão em viajar num 737 MAX", afirmou Henry Harteveldt, especialista do setor de viagens.
As grandes companhias aéreas dos Estados Unidos garantem que informarão os clientes em qual modelo de aeronave estarão a viajar.
Os analistas esperam que os temores desapareçam com o tempo. "Lembre-se do DC 10, que sofreu vários acidentes trágicos na década de 1970", aponta o analista Henry Harteveldt. "A McDonnell Douglas, fabricante do avião, fez muitas mudanças (...) e o DC 10 finalmente voou 45 anos sem problemas (...) Quando [o modelo] foi retirado, as pessoas lamentaram-se".
"Não quero ser uma cobaia, provavelmente vou esperar dois ou três anos antes de voar no MAX", comenta Gabriel Contassot, entusiasta da aviação. "A ideia de voar num avião cujo software foi simplesmente corrigido assusta-me", acrescenta. Contassot diz não confiar muito nem na Boeing na FAA.
Para convencer os viajantes, a American Airlines pretende organizar voos para membros da tripulação e convidar companhias e agências de viagens a visitarem o modelo, além de promoverem conversas com os seus especialistas.
O momento também não é propício para uma grande campanha da aviação, tendo em conta a segunda vaga de casos de covid-19, que afetam de forma profunda a economia e o volume de tráfego aéreo.
Além do mais, qualquer operação promocional terá de ser feita com sensibilidade, tendo em conta o respeito pelas vítimas e familiares dos acidentes da Lion Air e da Ethiopian Airlines.