60 mil pessoas são responsáveis por mais de 20% das urgências da região de Lisboa
António emociona-se quando se recorda daquele momento há 13 anos, quando era motorista de pesados, em que o delegado de saúde lhe disse que tinha de se reformar antecipadamente porque a vista estava muito longe do perfeito para conduzir. Consequência da diabetes, doença que já descobrira mas que ainda não não tinha aprendido a controlar. António Pina, 68 anos, é um dos 140 utentes de um projeto-piloto da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) que pretende melhorar a ligação entre hospitais e centros de saúde e evitar urgências desnecessárias.
Em 2016, os hospitais da ARSLVT realizaram 2,3 milhões de urgências, mais 6,3% do que no ano anterior. Destas, 46,6% foram pulseiras verdes e azuis - situações que não são consideradas urgências hospitalares -, a percentagem mais alta do país. Uma análise aos dados do ano passado permitiu à ARSLVT perceber que 6,6% dos utentes entram na categoria de "utilizadores frequentes", ou seja com quatro ou mais idas à urgência no ano. São 60 512 pessoas que foram responsáveis por 22,5% do total de urgência, o que se traduziu em 335 382 episódios em 2016.
O Programa de Gestão Integrada de Cuidados ao Doente Crónico Complexo, projeto entre o hospital São Francisco Xavier e as unidades de saúde familiar (USF) de Oeiras, Conde de Oeiras e São Julião da Barra arrancou em junho. António foi o primeiro doente a ser avaliado na consulta especialmente criada para este programa no Hospital São Francisco Xavier. A seleção feita pelo médico de família - é um trabalho conjunto - teve por base três critérios: mais de 65 anos, três diagnósticos de doença crónica e ser um grande utilizador de cuidados de saúde.
"Em média, estes utilizadores foram 5,4 vezes às urgências do São Francisco Xavier, tiveram 6,7 consultas na USF, 6,3 consultas externas no hospital e 9,4 dias de internamento. É um perfil preocupante", diz Anabela Costa, responsável do projeto na ARSLVT, referindo que não é único na região. "Temos de perceber o que é preciso corrigir para melhorar a qualidade de vida dos doentes, gerar eficácia no sistema e atuar de forma preventiva na agudização da doença crónica", aponta. A ARSLVT estima que com o alargamento de projetos como este a toda a região "seria possível ter uma redução de pessoas nas urgências na ordem dos 6,6% num ano", o que equivaleria a uma redução de 335 mil urgências. Apesar de reconhecer que há situações que justificaram a ida ao hospital.
Foi a mulher - entretanto separaram-se - que insistiu que António fosse ao médico ver porque andava a perder tanto peso. "Naquela altura era só trabalhar. Disse-lhe que se quisesse fosse ela lá pedir análises para mim. Ela foi e fiz. Quando os resultados acusaram diabetes pensei que não eram meus. Repeti e o valor já vinha mais alto", lembra António. Ao médico internista Nuno Ferreira e à enfermeira Teresa Carvalho, equipa que agora o acompanha sempre que precisar de ir ao hospital ou tirar dúvidas, conta da vez que estava no café perto de casa e se sentiu mal e foi levado pelo INEM e das dores de rins, que sabe agora que são provocadas pela diabetes, tal como a retinopatia diabética que lhe roubou grande parte da visão.
Responde ao médico que anda mais ou menos e que tem consulta de oftalmologia neste mês. E mostra à enfermeira que aprendeu o que comer quando de manhã tem baixas ou grandes subidas de açúcar no sangue. "Este projeto para mim tem sido bom. Sinto-me mais acompanhado", diz. No consultório fala-se da família, de como se sente, do que precisa.
Na carteira tem os dois números de telefone da equipa e o plano individual de cuidados que traçaram entre os três. Coisas simples, como melhorar a alimentação, mas que irão garantir que no futuro a doença está controlada. E com isso, sem urgências desnecessárias e mais qualidade de vida. Um trabalho que não se faz só com a saúde. Um dos problemas de António é a reforma que não chega aos 400 euros. A ajuda da assistente social veio garantir que nunca faltarão os medicamentos de que precisa.
Centrado no doente
Um trabalho que não se faz só no hospital. Faz-se no centro de saúde com o médico e o enfermeiro de família. O que uns sabem, os outros também. "É muito mais do que partilha de registos clínicos. É colocar verdadeiramente o doente no centro dos cuidados. Ao ser avaliado no hospital, a informação é partilhada com a equipa de família que tem a informação sobre o ambiente familiar. A pessoa quando recorre ao hospital ou ao centro de saúde já sabe que quem o receber já o conhece", explica Carlos Russo, da direção executiva do agrupamento de centros de saúde a que pertence a USF Conde de Oeiras, acrescentando que à equipa clínica se junta assistente social, fisioterapeuta, dietista e farmacêutico.
"Os doentes-tipo do hospital são idosos, com várias doenças crónicas, 76% dos nossos doentes têm 70 ou mais anos. Sentimos que os cuidados são baseados nos episódios de urgência por agudização da doença. São grandes utilizadores das urgências, mas também das consultas. Temos de mudar o paradigma, o que significa garantir a continuidade de cuidados, uma atitude proativa, que estejam sempre no radar do sistema, com cuidados integrados centrados no doente e nas suas necessidades", reforça Luís Campos, diretor do projeto e do serviço de medicina interna do São Francisco Xavier.
O projeto-piloto, que será avaliado ao final de um ano, "pode ser a grande oportunidade de mudança no sistema de saúde" se alargado ao país, ao fazer retornar aos centros de saúde estes doentes que procuram o hospital não por falta de médico de família, mas por uma questão de confiança e capacidade de resolução por terem disponível no imediato médicos de várias especialidades e exames. "Temos um inquérito de satisfação e todos os doentes sentem que a avaliação foi útil. Mas o verdadeiro indicador será o reduzir de urgências, internamentos e consultas."