500 HORAS SEM FUMO E UMA DECLARAÇÃO DE BOAS INTENÇÕES
Em Julho passado, pensei deixar de fumar porque ia de férias. Num primeiro momento, evidentemente piedoso, convenci-me de que a coisa poderia funcionar. Erro e admissão imediata: eu precisava mesmo daquelas férias e não conhecia (não conheço ainda) outro elemento inanimado mais próximo do prazer e do devaneio que um cigarro - um cigarro que, de preferência, será pequeno como os ventil. Como os cigarros são também, inversamente, bastante associáveis ao trabalho e à concentração, deve ser a isto que se chama a hipersignificância.
Em Julho não deixei de fumar: foram umas férias fantásticas, num lugar do Algarve que não acreditava que ainda fosse possível, com a família, amigos e cigarros, imensos cigarros.
Programei, então, deixar de fumar em Agosto. A vantagem de Agosto é a relativa interrupção que se dá mesmo na existência de quem está a trabalhar. Muitos dos habitantes de Lisboa têm uma dedicação especial pelos ares de Agosto. Já se fizeram quilómetros de crónicas sobre as magnificências do Agosto em Lisboa que se traduzem, aliás, numa: a cidade esvazia. Esse relativo sossego pareceu-me o ideal para uma empresa destas, a de deixar de fumar continuando a vida normal, mas em condições mais favoráveis.
Não consegui deixar de fumar em Agosto e já não me lembro bem porquê. O dia 1 passou e passou depois também o dia 15 e eu não consegui deixar de fumar. Depois em Setembro fiz novo período de férias e, sim, pareceu-me que era desta. Deixei de fumar oficialmente no dia 5 de Setembro. As primeiras horas suportam-se, o segundo dia é um horror, ao terceiro melhora. Contei os dias e as horas e, na altura pareceu-me, todas as horas.
E correram assim as férias, até ao 12.ª dia, antevéspera do regresso ao trabalho, quando me apeteceu desvairadamente um cigarro e fumei um só para experimentar o novo estado de ex-fumadora. E no dia seguinte fumei outro. E ao fim do primeiro dia de regresso ao trabalho já tinha fumado outra vez 40 cigarros.
Agora que estou quase a cumprir 500 horas sem fumo, algumas coisas mudaram: à medida que como cada vez mais, parece-me absolutamente desinteressante sair à noite. E, apesar de escrever estas coisas como se isto fosse um jornal de parede da associação de ex-tabagistas anónimos, não me apetece falar do assunto com outras pessoas. Umas tresandam à auto-suficiência dos que nunca fumaram (e não sabem) ou à suficiência dos que deixaram de fumar há muito tempo (e sabem mas ou não se lembram ou invocam o direito legítimo de superioridade). O resto são fumadores, um pessoal intragável, acossado e com mau humor, para quem qualquer um que tenha deixado de fumar nesta altura é um vendido. É claro que se consegue suportar melhor a coisa sem falar no assunto.