50 anos após a melhor seleção de sempre, há crise de craques no Brasil
Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza, Everaldo; Jairzinho, Clodoaldo, Gerson, Rivelino; Tostão, Pelé. A seleção do Brasil tricampeã mundial é por muitos considerada a melhor de todos os tempos. Foi coroada de glória há 50 anos. No dia 21 de junho de 1970, no Estádio Azteca, na Cidade do México, quando venceu a Itália por expressivos 4-1 na final do Campeonato do Mundo, culminando um trajeto brilhante, só com vitórias e com 19 golos marcados em seis jogos.
"Não sei se foi a melhor seleção de sempre, mas do ponto de vista coletivo foi sem dúvida uma equipa revolucionária para aquela época, pois fazia coisas diferentes: era muito compacta, defendia e atacava com muitos jogadores e fazia muitas trocas posicionais", explica ao DN Tostão, uma das grandes estrelas da equipa onde se destacava Pelé. Mais contundente é Jairzinho, segundo melhor marcador do torneio com sete golos (atrás do alemão Gerd Müller), que garante ao DN que essa "seleção brasileira foi a melhor do mundo de todos os tempos".
Tostão, de 73 anos, que fez dois golos (ambos ao Peru) no Mundial, considera que a final foi "o coroar" daquilo que a seleção produziu no torneio. "Foi uma equipa que foi crescendo na competição. Tinha muitos craques, mas éramos uma seleção muito organizada taticamente, com um grande planeamento e uma excelente preparação física", assume, acrescentando que o triunfo na final "foi incontestável frente a um adversário muito forte defensivamente".
O Brasil tornava-se então na primeira seleção tricampeã do mundo e iniciava a partir desse momento uma travessia no deserto de 24 anos, quebrada em 1994 com mais um título mundial, que seria repetido pela última vez em 2002, com Luiz Felipe Scolari como treinador e com estrelas como Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho. Agora, a seleção brasileira encontra-se num jejum de quatro Mundiais falhados e há quem já questione a razão pela qual a magia brasileira está cada vez mais longe do topo do futebol do planeta.
"O Brasil deixou de ter o melhor futebol do mundo." É assim, de forma simples e direta, que Tostão, atual colunista do jornal Folha de S. Paulo, resume o problema. Uma ideia partilhada por Renê Simões, antigo treinador das seleções jovens brasileiras que em 1987 orientou o V. Guimarães, assumindo que "o futebol brasileiro se tornou normal".
O problema, segundo Renê Simões, é que "o jogador brasileiro foi sempre o melhor a executar, mas agora precisa de pensar e decidir mais depressa e melhor", algo que não está a conseguir porque lhe falta o chamado futebol de rua. "Devido à violência, os meninos procuram as escolas de futebol, onde perdem a capacidade de improviso", defende, acrescentando que os treinadores formatam desde logo esses jovens com "conceitos táticos, deixando pouca liberdade para a criatividade, o improviso e a decisão". Por isso, "o Brasil passou a produzir muitos jogadores bons, mas poucos craques", enquanto na Europa os futebolistas "passaram a pensar e a decidir rapidamente e, além disso, melhoraram a execução".
Na prática, de acordo com Renê Simões, o Brasil não se adaptou aos novos tempos. "O futebol passou a ser jogado em pequenos espaços. No Mundial de 1970, cujos jogos passaram aqui no Brasil durante a quarentena, vimos no jogo com a Checoslováquia o Gerson dar seis toques na bola antes de passar para o Pelé marcar o segundo golo. Nos dias de hoje, quem consegue dar seis toques na bola no meio-campo? Isso não existe", sublinhou.
Tostão argumenta que, "tal como a ciência se desenvolveu, o futebol também evoluiu" e, como tal, "os europeus tornaram-se jogadores de maior qualidade técnica e taticamente mais organizados". O antigo avançado expõe a realidade crua: "No Brasil houve pouca evolução. Os jogos têm muitas bolas longas, chutos para a frente e muito espaço entre setores. O futebol passou também a ser mais físico, que é reflexo de um país mais violento, com uma sociedade com muita desigualdade social e muito individualista."
A solução defendida por Renê Simões é que em todos os treinos das camadas jovens "os primeiros 20 minutos sejam uma peladinha, onde cada um dos garotos resolve os seus problemas em campo e só depois entra o treinador com os seus conceitos". No fundo, é preciso alimentar o talento e a criatividade do jogador "para criar o caos e assim fomentar o improviso".
Tostão argumenta, no entanto, que o importante é "melhorar o jogo coletivo", porque "só assim é possível aumentar o número de craques". "O Brasil forma muitos jogadores, mas não forma jogadores excecionais. Hoje temos um craque que é o Neymar e, mesmo esse, teve muitos problemas na sua carreira", argumenta, justificando a sua ideia com um exemplo claro: "Se olharmos para o Mundial de 2018, seleções como a Bélgica e a França tinham mais craques do que o Brasil."
Jairzinho recorda com saudade e emoção que a seleção de 1970 "foi a única campeã do mundo da história que jogava com cinco números 10 no onze: Gerson, Rivelino, Jairzinho, Tostão e Pelé", num claro exemplo de uma equipa cheia de estrelas que "sabia jogar coletivamente" e que faz acentuar no antigo avançado, agora com 75 anos, "a tristeza" que sente pelo atual estado do futebol brasileiro. "Só temos o Neymar!", atira, sem rodeios.
Renê Simões lança outro dado interessante, pois desde o último título mundial em 2002 o Brasil foi sempre eliminado por seleções europeias - França, Holanda, Alemanha e Bélgica - e nas fases de grupos apenas contabilizou três vitórias com seleções da Europa (duas vezes com a Croácia e uma com a Sérvia). "Isso é que assusta", assume o antigo técnico de 67 anos, que agora se dedica a gerir a carreira de treinadores, lembrando que o Brasil perdeu o estatuto de maior exportador de futebolistas: "Tendo em conta a proporcionalidade com o total da população, o Brasil é apenas o sexto exportador de talento do mundo, atrás do Uruguai, por exemplo. E, tendo em conta a demografia, devíamos ter três ou quatro vezes mais jogadores em todo o mundo", argumenta.
Curiosamente, Jairzinho tem uma opinião diferente, pois considera que a ausência de títulos mundiais do Brasil deve-se em larga medida ao facto de haver "um excesso de exportação de jogadores". E avisa que "enquanto a Confederação Brasileira de Futebol não travar essas saídas, a seleção terá dificuldades em voltar a ser campeã do mundo". O antigo avançado, que brilhou no Botafogo e que na Europa representou o Marselha, recorda que "todos os jogadores da seleção de 1970 jogavam no Brasil e isso fez que houvesse um melhor conhecimento entre todos". Ainda assim, admite que é muito complicado fechar as fronteiras aos jogadores brasileiros porque "a maioria dos clubes estão falidos".
A vitória "incontestável", nas palavras de Tostão, do Brasil sobre a Itália na final de 1970 está ainda no imaginário de um povo que sonha com o regresso ao domínio do futebol. A conquista desse Mundial do México permitiu ao Brasil arrecadar de vez a Taça Jules Rimet, que era entregue à seleção que fosse campeã por três vezes e os canarinhos já tinham sido coroados em 1958 e 1962, tendo apenas falhado em 1966 por causa do Portugal... de Eusébio.
Este período áureo apenas teve comparação entre 1994 e 2002, embora pelo meio tenha perdido a final de 1998. Era uma geração que tinha craques como Romário, Bebeto, Rivaldo, Ronaldo ou Ronaldinho Gaúcho.
Os canarinhos estão agora a caminho dos 20 anos (quatro Mundiais) sem chegar a uma final. Só por uma vez atingiram as meias-finais, num torneio em casa, em que sofreram a maior humilhação da sua história, os famosos 7-1 com a Alemanha. Os brasileiros sonham com um regresso ao passado que possa honrar o Brasil de Tostão, Jairzinho e Pelé. Tem a palavra a geração de Neymar que em 2022 irá lutar para evitar um novo fracasso, que em 1982 marcou uma das seleções mais belas da história, onde brilhavam Falcão, Zico, Sócrates, Eder e companhia.