300 anos do balão de ar quente - Bartolomeu de Gusmão, cientista visionário e mulherengo
NÃO ERA COISA POUCA o que se propunha Bartolomeu apresentar à selecta audiência que reunira na Sala das Embaixadas da Casa da Índia em Lisboa, nada menos do que os monarcas portugueses e um núncio apostólico que viria a ser o papa Inocêncio XIII anos depois: para a história fica o registo de um balão de papel encerado que, alimentado pelo ar aquecido ao fogo de um tigela acoplada a uma bandeja, subira uns bons palmos acima das cabeças presentes antes de ser apanhado pelos criados da casa real, temerosos de que um incêndio se propagasse aos veludos e brocados das cortinas.
Estava-se a 8 de Agosto de 1709 e esta demonstração histórica de um princípio formulado 19 séculos antes por Arquimedes (século II a.C.) inaugurou a conquista dos ares pela humanidade, e os trezentos anos que exactamente hoje passam sobre a experiência de Bartolomeu de Gusmão só acrescentam à enormidade do feito deste sacerdote secular (foi postulante mas não terá chegado a envergar a roupeta de membro da Companhia de Jesus) nascido Bartolomeu Lourenço, em Santos, no Brasil, mas cujas raízes mergulham em famílias tradicionais e abastadas de Miragaia, a margem direita do Douro, de onde houve nome Portugal.
Bartolomeu de Gusmão não só acabara de demonstrar a viabilidade do balão de ar quente, como provavelmente sinalizava a D. João V o acerto que tivera quando, umas semanas antes, lhe concedera a patente para a construção de uma máquina de voar que permitiria ao rei de Portugal o domínio dos ares, «o transporte célere de víveres e tropas, o controlo dos territórios ultramarinos e a conquista dos pólos da Terra», empresa que só duzentos anos mais tarde a humanidade viria a alcançar.
A carta peticionária ao monarca português, que acabou por pagar do seu bolso os trezentos reis do registo, é um documento notável de visão geostratégica global e pouco importa se haja quem tenha dito (um irmão, anos depois) que Bartolomeu tentou «vender» a mesma ideia aos judeus.
Os dados biográficos do também conhecido como padre Voador, ou o Primeiro Cientista das Américas, como titula uma comissão brasileira criada há um ano para comemorar os trezentos anos deste feito notável, são mais ou menos conhecidos e atestam um espírito inquieto, que aos 13 anos inventou um sistema de recolha, encanamento e distribuição de água para o seminário onde recebeu formação religiosa e que por toda a vida não conseguiu sossego nos seus projectos de expandir o limite do pensamento e conhecimentos disponíveis na altura.
O que hoje a generalidade dos historiadores questionam é que tenha sido este sonho de voar e a sonhada passarola o fulcro das perseguições inquisitoriais que se lhe seguiram quase duas décadas depois. Alguns inclinam-se para que tenham pesado mais as suspeitas de judaização, que não terminaram com a sua fuga e morte em Toledo, em 1724, aos 38 anos, de tifo; ao que alguns documentos vasculhados nos arquivos dão fé, o seu envolvimento num episódio de «serralho» – como bem caracteriza o historiador Joaquim Fernandes – envolvendo freiras de Odivelas e a célebre amante de D. João V, Soror Paula, foi determinante para o exílio, dados os contornos de que se revestiu. Bartolomeu não desdenhava testar a castidade de uma das freiras ele mesmo, e por arrasto acabou por ver-se indirectamente envolvido nos planos de elaboração de uma mezinha que incluiria sólidos e restos de proveniência real em concentrações pouco católicas, o que chegou aos ouvidos da Inquisição como um acto de feitiçaria.
Não muito tempo antes, quando em Coimbra completava uma licenciatura em Direito (na época dizia-se formou-se doutor em leis), Bartolomeu solidarizara-se com outros estudantes brasileiros acusados de judaísmo e as investigações de sangue à sua árvore genealógica não resistiram a sinais evidentes de que a mãe de Bartolomeu teria sangue «da raça infecta» por via dos chamados «mamelucos brasileiros», em cujas veias corria sangue norte-africano e da etnia tupi. Uma «má imprensa» [ver caixa] de recortes xenófobos e maledicentes ajudou a fazer o resto.
Da electricidade à laranja da Baía
No início do século XVIII, quando Bartolomeu de Gusmão demonstrava ao rei de Portugal a possibilidade de o homem dominar os ares, a ciência mais avançada da época empenhava-se em estudar o potencial do magnetismo e da electricidade, mas ainda não lograra ligá-los entre si. Na área das tecnologias tinha-se iniciado há pouco (1698) a aplicação do vapor à maquinaria.
Como no caso de Newton e da sua lei da gravidade, cuja formulação teria sido inspirada na observação da queda de uma maçã, Bartolomeu teria formulado a aplicação de um princípio da mecânica descrito por Arquimedes – ao observar uma prosaica casca de laranja (da Baía, seguramente) a flutuar sobre uma fogueira, impulsionada pelo ar quente que se acumulara no seu interior…
A visão estratégica da celebridade Gusmão
Quando Bartolomeu de Gusmão escreve ao rei, em Abril de 1709, uma petição solicitando a autorização para construir uma máquina de navegar nos ares – com os quais se poderia «cumprir várias léguas por dia levando nos ditos instrumentos avisos de muita importância aos exércitos e terras mais remotas (...) quase no mesmo tempo em que se resolvem» – justifica a pretensão, que requer válida para si e seus herdeiros, com uma notável visão da importância geostratégica do seu invento, numa altura em que a vizinha Espanha se afundava na Guerra da Sucessão, no Brasil estalavam alguns conflitos e o clima militar na Europa não era fácil. Curioso é que aquilo que torna Gusmão uma celebridade mundial – o famoso desenho da passarola – não terá passado de uma mistificação urdida pelo próprio com a cumplicidade do seu aluno, filho do marquês de Abrantes, um dos seus mecenas. O registo deste facto consta de uma carta que o núncio Conti escreve para Roma a contar a experiência de 8 de Agosto, a que assistiu.
A gravura da falsa passarola, que nunca foi construída ou vista, foi publicada em jornais estrangeiros da época algumas semanas antes da experiência com o aeróstato de 8 de Agosto e a princesa Maria Isabel, mãe da imperatriz Maria Teresa, da Áustria, comentava em carta enviada de Barcelona à sua filha que, se fosse viável o que apregoava o padre jesuíta, em breve poderia aceitar o convite da rainha de Portugal e viajar até Lisboa de balão todas as semanas.
O balão e a máquina de voar de Bartolomeu foram ainda o prato forte de folhetos satíricos de Tomás Pinto Brandão, um poeta de encomenda da corte que parece ter tomado de ponta o padre e visto na ridicularização dos seus feitos uma forma de ganhar dinheiro extra os encómios pelos quais era pago por vários fidalgos.
Esta notoriedade involuntária, num caso muito curioso de «má imprensa», foi fundamental para a criação junto do povo da imagem de um «brasileiro» metido a inventor que arrastava a coroa para futilidades inúteis quando a nação precisava de dinheiro para outras empresas. Esta aura de loucura e heterodoxia foi o alimento ideal para as suspeitas da Inquisição, e nem os altos cargos que Gusmão e o seu irmão Alexandre ocupavam, que era diplomata na corte portuguesa, lhe valeram.
Mas a passarola, que lhe alimentara noites insones numa oficina na Bica do Sapato, em Lisboa, e o guindou para a imortalidade, teve pouco que ver com a sua queda em desgraça no seu tempo.
Apesar dos altos cargos de Gusmão na sociedade portuguesa – foi um dos cinquenta fundadores da Real Academia de História e contribui com pesquisa muito valiosa a respeito dos bispos portuenses –, a imprensa oficial que Joaquim Fernandes consultou nunca chegou a registar a experiência de 8 de Agosto e, ao dar notícia da sua substituição na academia, nem sequer cita o seu nome…
De Brás Cubas a Fafe e Santa Maria da Feira
A ascendência mais directa de Bartolomeu de Gusmão em Portugal liga-o a portugueses de Fafe e Vila da Feira (hoje Santa Maria da Feira), homens e mulheres do Norte, portanto, mas os avoengos – na linhagem materna mais ancestral – encontram-se nos Afonso Gaya, família abastada de Miragaia que integra a primeira armada colonizadora do Brasil, em 1531. Aliás, sempre por via materna, Bartolomeu acabou por nascer na cidade fundada por um outro portuense, Brás Cubas, também ele emigrado na armada de Martin Afonso de Sousa. Nesta cidade do litoral do estado de São Paulo, na Praça Rui Barbosa, existe uma estátua homenageando Bartolomeu de Gusmão, que toma o sobrenome do jesuíta a quem a família confiou a sua instrução e a do irmão, Alexandre de Gusmão.
Versos de escárnio contra a «fera passarola»
A biografia de Bartolomeu de Gusmão está amplamente estudada por vários historiadores de Portugal e do Brasil (Freire de Carvalho, Augusto Filipe Simões
(século XIX ) e visconde de Faria e Afonso de Taunay (século XX ), mas entre nós vai ser objecto de uma curiosa abordagem: as peças em verso que sobre o padre e seus inventos se escreveram integram a mais recente obra de Joaquim Fernandes: depois de O Grande Livro dos Portugueses Esquecidos, está no prelo do Círculo de Leitores e com publicação iminente a antologia Mitos, Mundos e Medos. O Céu na Poesia Portuguesa, que traz, entre muitas outras, citações satíricas a Bartolomeu de Gusmão, algumas anteriores até à experiência de 8 de Agosto, relevando uma certa ciumeira que a presença do «estudante americano» – e o acolhimento que o rei lhe prodigalizava – gerou:
«Ao novo invento de andar pelo ar»
Esta maroma escondida/ Que abala toda a cidade/ Esta mentira verdade/ Ou esta dúvida crida; / esta exalação nascida/ no Português firmamento:/este nunca visto intento/ do padre Bartolomeu/ assim fora santo eu/ como ela é coisa de vento./ Esta fera passarola/ Que leva, por mais que brame,/ Trezentos mil réis de arame/ Somente para a gaiola:/ Esta urdida paviola/ Ou este tecido enredo/ Esta das mulheres medo/ E enfim dos homens espanto;/ Assim fora eu cedo santo/ Como se há-de acabar cedo.
Assim escrevia Tomás Pinto de Brandão, um portuense que fazia coro com outros escritos oriundos de publicações anónimas em Portugal e no Brasil, em que o padre era tratado com pouquíssima simpatia ou respeito pelo valor científico das suas ideias. Aliás, convém esclarecer que desde muito jovem, com 15 ou 16 anos, Bartolomeu dava mostras de uma memória prodigiosa, «que lhe permitia citar de cor e de trás para a frente (literalmente) qualquer coisa que tivesse lido por uma única vez», refere Joaquim Fernandes, consultando farta documentação. Este seu «jeito», de resto, terá sido amplamente aproveitado pelos serviços secretos reais, que chegaram a utilizar os serviços de Gusmão a desencriptar mensagens cifradas em algumas embaixadas.
Com a obra sobre a poesia satírica concluída, o historiador portuense não desdenharia encontrar – em Portugal ou no Brasil – quem no mundo das imagens a mexer se interessasse pela biografia deste homem, cuja vida dava mesmo um filme, e dos bons.
Comemorações atlânticas e balões em todos os céus
O padre Voador nunca voou e muito do que algumas gazetas europeias escreveram sobre Gusmão remetem mais para as aventuras do barão de Munchausen ou personagens semelhantes do que para a realidade. No entanto, tal como não haveria Fórmula 1 sem a roda, não haveria hoje a aeronáutica e a aerostasia sem Gusmão.
No Brasil, onde a sua memória é de há muito acarinhada com um orgulho justificado, uma comissão Comemorativa dos 300 Anos do Balão do padre jesuíta formada em 2008 tem apadrinhado e organizado iniciativas evocativas deste grande feito e desde o dia 3 deste mês que se intensificam os eventos: como o lançamento de um selo especial, actividades para crianças, exibição de balões na Praia de José Menino, em Santos, e até um show de balões iluminados hoje à noite. Subidas de balões – um dos quais atravessará a Vila Belmiro (o estádio do Santos, de Pelé e Robinho), exposição de maquetas históricas elaboradas desde há duas décadas por Silva Filho, um professor de Engenharia reproduzindo os inventos de Bartolomeu de Gusmão, estão agendados e em Portugal há também, embora de forma mais contida, homenagens em curso. A Força Aérea Portuguesa e o jornal Público lançaram recentemente a colecção de dois livros Portugal na Aventura de Voar, para comemorar os trezentos anos do balão e os cem anos da aviação em Portugal.
Nos céus do planeta, perto de uma centena de balonistas de mais de 15 países farão hoje um voo especial evocativo desse momento em que Gusmão abriu à coroa portuguesa a possibilidade de dominar terras, mares e ares. Gabriela Slavec, balonista brasileira, integra a Comissão 300 Anos e explicou à NS’ que outros amantes deste desporto podem associar-se aos eventos em todo o mundo. Os pilotos que quiseram participar, realizando um voo no mesmo dia, deveriam enviar um e-mail para contato@balonismonoar.com.br com o seu nome e país onde seria realizado o voo, com o que ficavam «automaticamente inscritos. Depois do voo, poderão enviar uma foto e um breve relato, para receberem pelo correio uma bandeira especial alusiva às comemorações» disse a campeã, paulista.