30 Anos da Revolução dos Cravos: Um país sombrio à espera do fim

O DN publicou uma série de trabalhos sobre o golpe, transformado em revolução, que derrubou o Governo de Marcello Caetano, a 24 de Abril de 1974. Hoje, é traçado o retrato de um país que vivia os últimos dias de uma ditadura que se prolongava há longos 48 anos, quase meio século. <br /> Em entrevista, o estratego do golpe, o então major Otelo Saraiva de Carvalho, revela os planos do Movimento das Forças Armadas para o caso de falhanço da Revolução dos Cravos: os capitães incentivavam um novo golpe, mas na Guiné-Bissau, que poderia passar pela independência daquele país africano. Nos próximos dias, o DN revisitou alguns dos acontecimentos mais importantes desses anos, como a formação do MFA, o complexo processo de descolonização, os golpes e contragolpes no Verão Quente de 1975, as relações das grandes potências, EUA e URSS, com um país em revolução
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No dia 18 de Abril de 1974 - faz hoje precisamente 30 anos -, Fernando Rosas viu pela primeira vez a família mais chegada desde que mergulhara na clandestinidade, em Março de 1973. Motivo para a reunião: o então militante do MRPP festejava nesse dia o seu 28.º aniversário.

Em rigor, não havia grandes razões para celebrar. Fernando Rosas era um homem acossado desde que saíra de Caxias, em Novembro de 1972. E para esse encontro recorreu a uma casa em Cascais, de Alfredo Caldeira, hoje administrador da Fundação Mário Soares.

Clandestino, Fernando Rosas conheceu (embora por pouco tempo, quase um ano) o lado mais escuro de um país sombrio à beira do fim. Também por isso, as malhas apertavam. O relatório daquele dia da comissão de exame prévio (novo nome da censura) regista:

«Homenagem a Óscar Lopes - PROIBIDO. Confraternização de antigos alunos do Colégio Militar - PROIBIDAS indicações dos nomes dos oficiais que fizeram parte do curso X ou do curso Y. Julgamento da ARA (Acção Revolucionária Armada) - MANDAR para REDUZIR à expressão mais simples. Julgamento das 'Três Marias' (as escritoras Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa): TUDO CORTADO.»

Assinavam o coronel Roma Torres e o capitão Correia de Barros.
(citado em Os Segredos da Censura, de César Príncipe, Ed. Caminho).
O 18 de Abril representou também para Fernando Rosas uma das primeiras oportunidades de ver o filho, cujo primeiro aniversário fora passado no parlatório de Caxias.

«Organizámos tudo com muito cuidado, tínhamos de convencer o miúdo que ele não podia dizer em público que tinha visto o pai», recorda o historiador.
A alegria do reencontro ia pregando uma partida. «Vieram dizer-me que ele chegou ao infantário, bateu com a mão na mesa, e começou a dizer 'Estive com o meu pai', perante o pânico daquela gente toda, que sabia o que se passava.»
Fernando Rosas passara à clandestinidade em finais de Março de 1973. O MRPP desencadeara em Lisboa acções de agitação para denunciar o assassinato de Amílcar Cabral pela PIDE e o seu nome surgiu durante os interrogatórios violentos a que foram submetidos alguns camaradas então presos.

«Eu tinha noção do carácter provisório da minha situação. Depois de sair da prisão, não consegui reentrar no emprego, como técnico jurídico da Direcção-Geral de Transportes Terrestres; o director-geral disse-me que tinha uma informação negativa da PIDE.»

Avisado do perigo, só voltava a casa em horas desencontradas, para evitar encontros forçados. De uma dessas vezes, topou com um pide que reconheceu dos interrogatórios na prisão. «Nessa altura, tínhamos uma espécie de sexto sentido para essas coisas.» A fuga rocambolesca pelas ruas de Lisboa foi digna de uma cena de filme. Hoje, Fernando Rosas dá graças ao Renault 4L que lhe permitiu escapar por uma nesga de espaço deixada pelo carro pesado dos pides, ao pouco trânsito de então que lhe deu para apitar freneticamente e passar vários semáforos com o vermelho («se fosse hoje, não me tinha safado», reconhece) e à intuição, que o conduziu à maternidade Alfredo da Costa, onde entrou de rompante.

«O porteiro diz-me tenha calma, onde é que está a sua senhora, vá ali para a fila, se não se importa, dar o nome; e eu, afogueado, a minha mulher está a chegar e tal, meti-me na fila, fui comendo papéis e destruindo umas coisas, fiquei ali um bocado à espera; depois vim à porta e respirei de alívio, quando confirmei que eles não me tinham conseguido apanhar», relata.

Telefonou a um antigo companheiro de prisão (« era uma altura em que, em certos meios, ninguém fechava a porta a um perseguido pela polícia»). Esse homem, «que estava em liberdade condicional, tinha quatro filhos em casa, não só me acoitou vários dias, como depois me arranjou uma casa nos arredores de Lisboa, onde passei a primeira época da clandestinidade.»

Rosas não chegou a ter o sentimento da luta interminável que tanto marcara os clandestinos nos anos 50 e 60. «Não, estávamos convencidos de que o regime estava a acabar. Era palpável aquilo a que, como historiador, posso chamar 'o sentimento do fim'.

Tínhamos a noção de que estávamos a entrar numa curva decisiva da história.»
Esse sentimento, aliás, fora confirmado na manhã desse 18 de Abril. Depois do encontro com a família, Fernando Rosas participou numa reunião da direcção clandestina do MRPP em que se discutiu a iminência do golpe, de que tinham sido avisados pelos seus contactos no movimento dos capitães.

Nesse dia, a realidade aparente ainda era a de que a ordem reinava em Lisboa. O editorial do DN intitulava-se «A Orelha de Mao» e começava: «A Rússia e a China travam em África uma guerra surda pela conquista de zonas de influência.» Não era mentira nenhuma, mas a perspicácia do editorialista conheceria o apogeu no dia 24, com uma nota que se tornou famosa: «Balas de Papel.»

A Assembleia Nacional (eleita «com direcção assistida» no final de 1973 perante protestos da oposição e slogans do género: «Sem Guiné e sem Bissau, Marcelo vai para a urna»...) discutia o problema da habitação em Angola e Moçambique. O ministro do Ultramar recebia uma mensagem de 35 jovens timorenses transmitindo-lhe a «confiança na determinação do Governo de prossecução da política de unidade e progresso da Nação».

Ilusões. Até o teatro de revista as afastara. No Maria Vitória, o espectáculo mandava Ver, Ouvir e... Calar e no ABC prometia-se Tudo a Nu. Nas salas de cinema, era ainda pior: além de O Magnífico Jean-Paul Belmondo e de O Convite, de Claude Goretta, jornais e cartazes no centro de Lisboa anunciavam para muito em breve...

A Golpada.

O «sentimento do fim» era avassalador e as perspectivas pessoais grandiosas. «A nossa perspectiva não era seguir uma carreira; era fazer a revolução. Tínhamos a noção de que vinha aí um grande processo de mudança e queríamos participar a cem por cento», diz Rosas.
Depois, tudo correu a uma velocidade alucinante. A ideia de que a vertigem acabara e a reequacionação das vidas pessoais veio mais tarde, no refluxo. Fernando Rosas abandonou a militância em 1980 e esteve dela afastado quase vinte anos. Quem diria que, entretanto, se transformaria no historiador do regime a que também ajudou a pôr ponto final?

No Mundo

Crise no Médio Oriente e Watergate
Recuando 30 anos, as notícias «lá fora» eram dominadas pela crise no Médio Oriente, o caso Watergate e a morte de Georges Pompidou, o presidente da França. Na música, o «agrupamento ABBA», da Suécia, ganhou a 19.ª edição do Festival da Eurovisão.

Médio oriente A crise no Médio Oriente fez a manchete no DN em várias edições nesse mês de Abril. Eram ainda as ondas de choque da crise de Yom Kippur. A carismática primeira- -ministra israelita Golda Meir anunciou a sua demissão a 12 de Abril. Dias depois da «chacina de Kyriat Shimoni», junto à fronteira com o Líbano, em que morreram 18 pessoas, na sequência de um ataque das forças israelitas que «matou três guerrilheiros palestinianos».

watergate Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos, estava sob fogo cerrado devido ao «caso Watergate», que levou à sua demissão, meses mais tarde. A 3 de Abril, o DN noticiava as gravações que implicavam Nixon no assalto ao edifício Watergate, onde ficava uma sede dos democratas.
CEE As divergências entre a França e o Reino Unido já são antigas.
Na então CEE (hoje União Europeia), seja a propósito das relações da Europa com os Estados Unidos seja por causa da política agrícola.

A prová-lo, a notícia do DN de 3 de Abril, em que se dava conta que o Governo de Paris bloqueou acordo para novas bases de consultas da CEE com os EUA. Como sempre, o Reino Unido queria manter a independência, da sua política económica face à CEE.

frança O presidente francês Georges Pompidou morreu 2 de Abril.
«O Ocidente perdeu um dos seus grandes leaders» - era o título do DN.
Eurovisão E depois do Adeus, de Paulo Carvalho, não ganhou a Eurovisão, mas foi uma canção-senha para o 25 de Abril.

memória


Marcello Caetano e Américo Thomaz foram os dois últimos representantes da ditadura derrubada na madrugada do 25 de Abril trauma. A guerra colonial marcou uma geração de portugueses. Na foto, imagem da partida de soldados para a guerra colonial «cantando e rindo». A Mocidade Portuguesa, de inscrição obrigatória, foi um dos símbolos do regime que teve Salazar como figura tutelar

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