2017: não há razão para queixas
Não sei se gostam do cineasta nova-iorquino Woody Allen - eu adoro - ou se viram o seu último filme, Café Society. É um filme, como quase todos os seus, que aborda de maneira cativante e sofisticada a nostalgia sobre o que podia ter sido e não foi, ou dito de outra maneira, a melancolia sentida por um tempo passado que consideramos erradamente que foi melhor. Um jornalista amigo, também fã de Allen, acredita que não só a nostalgia é estéril como, falando das pessoas a quem a vida correu relativamente bem, é sentimento de cobardes e egoístas. De facto, escreveu: "Se nada horrível te aconteceu, converter a nostalgia no centro dos teus dias, como se a vida te devesse algo, é de uma ingratidão e arrogância colossais, um sentimento que prova que não mereces o que anseias e leva Deus a duvidar se não foi demasiado generoso com o que te deu." Estas palavras, do jornalista espanhol Salvador Sostres, soam duras, mas têm mais que ver com a realidade do que parece. No mundo desenvolvido em que estão Espanha e Portugal, nesta parte afortunada do planeta, temos vidas privilegiadas, comparadas com as de outros lugares, infelizmente, com menos sorte - mas só ouvimos queixas. Acontece com frequência que quando vamos a esses lugares menos favorecidos pelo clima e pelas políticas dos seus governos, as pessoas demonstram um sentimento de felicidade muito superior ao nosso. Há espaço para queixas quando a providência nos sorriu com imensa doçura? Naturalmente há pessoas que passam enormes dificuldades, e até as que têm uma vida mais confortável têm dias complicados e investidas terríveis que fazem duvidar de tudo. Mas o meu amigo pensa, como eu em muitos casos, que vivemos demasiado bem e que esta situação de privilégio nos fez baixar a guarda para abordar com honra qualquer contrariedade, por pequena que seja. Tanto bem-estar atrofiou-nos, a nostalgia é em nós uma preguiça espiritual, um desleixo, um descuido dos dons que recebemos. Tanto conforto e sossego fizeram-nos esquecer o lado brilhante da vida, que devemos olhar com primazia se não queremos pecar por soberba.
Esta é a tese que apoia num artigo recente outro jornalista, John Carlin - este um adversário, um progressista que não tem problema em reconhecer que pertence à elite que lê e escreve nos grandes jornais do mundo, como o The New York Times, e pensa que a vitória de Trump nas últimas eleições americanas foi o triunfo da idiotice frente à inteligência, do cinismo sobre a decência e da mentira sobre os factos. A minha posição é a contrária - ele que fique com os seus caprichos -, mas a verdade é que a tese de Carlin sobre a situação do conjunto da humanidade é deveras otimista, o que é uma surpresa muito agradável tratando-se de um jornalista que pertence à "esquerda caviar".
Como ele mesmo diz, acreditam as estatísticas e ocuparam-se a retratar outros grandes economistas - alguns deles espanhóis, como Xavier Sala-i--Martín -, se alargarmos o olhar às tendências que marcam o progresso material da humanidade, encontraremos sempre razões para pensar que longe de viver no pior dos tempos, vivemos no melhor. A desigualdade, por exemplo, um dos assuntos que geram mais debate nas economias desenvolvidas, é um tema de discussão anedótico noutras partes do mundo. Os números das Nações Unidas revelam que, desde 1990, a maioria dos países em desenvolvimento avançaram devido ao desenvolvido em rendimentos, acesso à educação e longevidade. 2016, que acabámos de deixar, foi o primeiro ano em que o número de habitantes da Terra que vivem na pobreza extrema caiu abaixo de 10% e a fome desceu para o nível mais baixo num quarto de século. Menos razões há para queixas nos países ricos. Nos EUA, a taxa de desemprego caiu dos 7,8% quando Obama chegou ao poder para 4,6%. No Reino Unido do brexit, a percentagem de pessoas com trabalho foi a mais alta da década. Em Espanha, para citar o exemplo que conheço melhor, a taxa de desemprego no governo de Mariano Rajoy baixou mais de cinco pontos em quatro anos, uma velocidade desconhecida entre os nossos parceiros. Criámos mais emprego do que em toda a UE e crescemos o dobro dos países comparáveis. Ironicamente, a Espanha chama a atenção pela diferença entre a qualidade e o nível de vida, que está entre os melhores do mundo, e o elevado grau de insatisfação dos espanhóis, meus compatriotas, que têm uma propensão vergonhosa para se queixar de tudo; nos termos de Allen, uma inclinação para a nostalgia sobre um mundo melhor que nunca existiu é completamente imaginário.
Os habitantes da Terra, escreve John Carlin, apoiado por todas as estatísticas, gozam de melhor saúde do que nunca. A esperança de vida continua a crescer e as doenças mais letais cobram menos vítimas do que antes, segundo a Organização Mundial da Saúde. Lembram-se do ébola, a praga que ia acabar com grande parte da população de alguns países de África? Segundo a OMS, já foi erradicada. Não o sabemos precisamente porque nenhum meio de comunicação pôs tanta ênfase neste lado brilhante da vida como se empenhou quando se propagou o vírus, aparentemente com carácter de pandemia inexorável.
Não seríamos justos se não fechássemos este capítulo com as guerras. Nunca houve tão poucas. Obviamente, o que se passa na Síria é horrível, a ameaça do Daesh é um pesadelo quase impossível de combater com garantia total de sucesso, mas vivemos numa paz sem precedentes. Desde 1946 que o número de vítimas devido à guerra diminuiu em proporções colossais. Diz Carlin, com razão, que o mundo é menos selvagem do que alguma vez foi, apesar de, infelizmente, considerar nesta categoria tudo aquilo de que não gosta: Trump e os que votaram nele, os que se opuseram - por dignidade - ao referendo da paz na Colômbia, e essas outras posições que considera próprias de conservadores e retrógrados como eu. Não deixa de ser, contudo, uma delícia encontrar um pensador de esquerda que, apesar de ser apenas uma vez por ano, quando chega o Natal, reconheça que o mundo vai claramente melhor, mesmo que omita o motivo: o avanço imparável da liberdade e da economia de mercado em quase todo o planeta. E que se esqueça de denunciar a causa da nostalgia, da vitimização e da queixa injustificada e herética, que não é senão um Estado de bem-estar gigantesco que nos acostumou a viver demasiado bem, que nos atrofiou e que nos fez esquecer a necessidade de agradecer todos os dias a Deus pela sorte que temos.